Maria João Avillez, no Observador, deu voz ao que é o meu ponto de vista sobre aquilo de que trata. E chamo a atenção, em especial, para o último parágrafo do texto, a respeito do qual, talvez mais do que nenhum outro, convém reflectir.
« 1. O Presidente da República
não é um cabide. Compete-lhe voz, opinião, critério e fundamentação. Foi o que
fez no pleno entendimento da natureza das suas funções. Com considerações a
mais? Porventura, mas seja como for o país, daqui uns meses – quando for tarde
de mais – lembrar-se-á de cada uma das suas palavras. Fez um discurso forte, o
que é porém muito distinto de ter feito um discurso violento e divisionista
como – por exemplo – o que fez Sampaio quando despediu Santana Lopes, que
estava escorado numa maioria absoluta, política, coerente e não meramente
numérica e descaradamente artificial como a suposta existir hoje. (Sugiro a
propósito a leitura das reações de aplauso e jubilo dos líderes do PS, do PCP e
do BE face a esse extraordinário gesto do então Presidente – vistas à luz do
que a esquerda diz hoje, acusa hoje e insulta hoje, essas reações são quase
indecorosas).
a) Ao contrário do que se
disse – muitas vezes insultuosamente e num tom raramente praticado entre nós –,
Cavaco Silva não alertou os “mercados”, alertou-nos a nós e ao país para o que
irá ser o previsível comportamento dos fatídicos mercados – e do BCE e de
Bruxelas e das suas regras de jogo. Não é de todo o mesmo que ter decidido
malevolamente “alertar” esse universo, que para o bem e para o mal, é o nosso.
b) Não “uniu” o PS – nem um
mágico hoje o uniria! –, nem dividiu deputados. Enfatizou a responsabilidade de
cada um deles neste momento, o que não é pouco, mas não é o mesmo. Estando o
jogo político circunscrito à arena parlamentar, porque não há-de o Chefe do
Estado pedir aos jogadores que atentem no jogo?
c) Não disse que nunca daria
posse a um governo de extrema-esquerda. Nem podia, como é óbvio e ele bem sabe.
Disse que não dava “agora” e explicou porquê. Mas ao mesmo tempo e justamente
com o que disse “agora”, avisou as navegações do mau tempo que as espera. Se no
uso das suas prerrogativas o Presidente da Republica acha que os programas
partidários e as vontades políticas da extrema-esquerda, uma vez aplicadas,
lesam o interesse nacional, porque não há-de dizê-lo? Soares fez o mesmo,
Sampaio fez o mesmo. A escolha, cabe agora e bem, aos deputados. A serem
derrubados, Passos Coelho e a coligação devem sê-lo no Parlamento e não por
António Costa na rua ou num cabeçalho de jornal.
2. A eleição de Ferro Rodrigues não surpreende nem ao de leve. Mas
ao contrário do que se disse – com esta mania de acharem que meio país é
estúpido – não foi nem o verbo, nem o tom do Presidente que “elegeu” Ferro.
Quem se julga a dez minutos e a dez metros do poder e das suas benesses como
qualquer deputado socialista se julga – nem que ao nível de um sublugar num
qualquer falido organismo estatal – não corria o risco de ir dentista nesse
dia, falhando a votação. Do mesmo modo que nenhum parlamentar do PS irá ao
médico ou ao Porto ver a mãe na votação do programa do Governo. Sendo óbvio que
uma parte do PS não comprou esta louca aliança política, não se revê nela e
está à espera de ajustar contas com António Costa, o tempo é de medir
conveniências próprias. Não é o momento para ser livre, nem para estar à altura
da herança do PS nestes 40 anos. Ninguém ousará hoje um passo em falso. A
coragem dá trabalho. Sabe-se lá o que é o dia de amanhã.
3. Depois do líder do PS ter solenemente avisado o país de que
nunca votaria uma moção de rejeição ao Governo sem dispor de uma alternativa,
não dispondo de uma alternativa vai votar a moção de rejeição ao governo. A boa
companhia da extrema-esquerda vai saltar-lhe ao caminho e – mais cedo que tarde
– arreganhar-lhe o dente, já todos os disseram, em todos os tons. Até lá
espera-se o parto do acordo que – de momento – persiste em não ver a luz da
glória. Ou terá sido por acaso ou por “razões pessoais” que Cavaco Silva
referiu como “inconsistente” algo que ainda não existia? De “consistente” o que
há verdadeiramente é a obsessão de António Costa com o lugar de Passos Coelho.
Basta (saber) ouvir Jerónimo
de Sousa, o adorado “avô” da media durante a campanha eleitoral, para observar
o pouco que ali se costuma brincar em serviço: o PCP precisa de oxigénio para a
CGTP, precisa de não ser subalternizado, precisa de moedas de troca para os
seus e como tal agirá. E assim sendo, ambas as facturas a pagar, a do BE que já
conhecemos e a do PCP se este vier a apresentá-la, serão caríssimas. Cá
estaremos para ver, e infelizmente para as pagar.
Mas… e Mário Centeno? Há dias
mandaram-me um mail com o vídeo de uma conferência de imprensa sua, realizada
há meses, no Largo do Rato. Perguntei a quem me enviou se era uma montagem ou
uma dobragem (que foi o que me pareceu). Não era. Era a sério. Espantei-me com
o comportamento desnorteado de Mário Centeno, balbuciando, sorriso cativante
mas olhar de náufrago, a sua impossibilidade de responder a uma questão com o
argumento de “serem muitos números”. Mas o que não julguei possível foi que o
coordenador de um programa económico “de governo” tenha vindo a assistir, impávido
e mudo, à descaracterização, step by step, daquilo que seriamente procurou
inspirar e coordenar. Que dirá a si mesmo ao fim do dia deste vexame?
A vida continua e Mário
Centeno continua a frequentar a extrema-esquerda ao lado de Costa: como se nada
fosse e caucionando tudo.
4. Andam para aí apostas sobre se Cavaco Silva indigitará António
Costa para liderar um governo integrado ou apoiado por radicais se a coligação
for chumbada como sofregamente a esquerda anuncia. Também circulavam apostas
sobre se o Presidente indigitaria Passos Coelho para formar novo Executivo
quando era bem de ver que não podia fazer outra coisa. Não valiam a pena nem as
apostas, nem as ânsias. Agora também não. E só os que não medem nem alcançam o
que significaria para o país um governo de gestão podem prosseguir com as
apostas.
5. Há gente dividida, um
clima crispado, tensão no ar, radicalismo, linguagem insultiva. Uma revolução,
em acabando – mal ou bem –, esgota-se. Por natureza e definição nada disso pode
ser comparável ao tempo politico que vivemos hoje, numa democracia estabelecida
e num Estado de direito, mesmo se uma e outro em acentuada perda de sentido e
de valores.
Aflige-me e perturba-me este
estado de coisas. Está a ir-se tão longe na irracionalidade nos modos e nos procedimentos
políticos que o retrocesso vai ser difícil e o reequilíbrio porventura
impossível. Talvez já só noutra República. De um dia para o outro –
literalmente –, metade do país passou, aos olhos da esquerda, a ser constituída
por inimigos em vez de adversários, olhados com acinte, tratados com
inclassificável desprezo, (quase) acusados de traição e sem direitos políticos.
Os grandes mestres do ressentimento, os grandes encenadores do ódio, os
praticantes da crispação, podem dormir descansados. Eu é que talvez não
consiga.»
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