Leia-se com atenção este texto de Rui Ramos, no Observador:
Ao princípio, pareceu um
devaneio de noite eleitoral, inspirado pelo desespero da derrota. Entretanto,
converteu-se numa política fria e cínica: António Costa, depois de sujeitar o
PS a um desaire nas urnas, parece agora inclinado a comprometer os socialistas
na aventura de um governo com comunistas e neo-comunistas. Dir-me-ão: é só uma
estratégia negocial. Ao admitir formar governo com apoio do BE e do PCP, Costa
pretende apenas aumentar a sua margem de manobra perante a coligação, ou então
obrigar o PCP e o BE a mostrarem que não estão verdadeiramente disponíveis.
Mesmo que seja isso, António Costa está a pôr em causa a democracia portuguesa
tal como saiu dos confrontos de 1974-1976 e se desenvolveu durante quarenta
anos.
Em primeiro lugar, Costa já
negou a tradição, sempre respeitada desde 1976, de que em Portugal quem fica à
frente vence as eleições e tem um mandato para governar. No dia 4 de Outubro,
os portugueses escolheram entre quatro principais soluções de governo: a da
coligação PSD-CDS, a do PS, a do BE e a do PCP. A maior parte escolheu a
coligação PSD-CDS. É bom lembrar: a coligação ganhou as eleições com mais de
seis pontos percentuais à frente do PS, e com quatro vezes a percentagem de
votos do BE e cinco vezes a do PCP. António Costa era candidato a
primeiro-ministro: foi assim que participou nos debates e apareceu nos
cartazes. Caso os portugueses quisessem um governo liderado por António Costa
teriam certamente posto o PS à frente. Não puseram, e, portanto, não queriam.
Ao negociar com PCP e BE, Costa está a admitir impor aos portugueses, através
de uma chapelada parlamentar, um governo que os portugueses rejeitaram nas
urnas. Talvez a Constituição não o impedisse, mas à luz da tradição política
nacional e das expectativas dos eleitores seria um autêntico golpe de Estado.
Outros regimes portugueses praticaram fraudes eleitorais: vai este inaugurar as
fraudes pós-eleitorais?
Costa argumenta que uma
“maioria de esquerda” é equivalente à “maioria da direita”. Não é. A aliança
entre o PSD e o CDS é junta dois partidos democráticos; a aliança entre o
PS, o PCP e o BE juntaria um partido democrático e dois partidos que rejeitam
tudo aquilo que define a democracia portuguesa. O PCP e as forças políticas que
constituem o BE têm como ideal as antigas ditaduras comunistas, e entre si
admitem a saída de Portugal do Euro e da Nato, o repúdio da dívida pública, a
reversão das privatizações e a nacionalização da banca.O PS foi o partido que
em 1974-1977 liderou a luta por uma democracia pluralista de tipo ocidental, ao
lado do PSD e do CDS e contra o PCP e a extrema-esquerda agora escondida no BE.
O PS não é apenas um partido de “esquerda”, mas um partido da “esquerda
democrática”, da mesma maneira que o PSD e o CDS não são apenas partidos de
“direita”, mas da “direita democrática”. A direita democrática não se define
apenas contra a esquerda, mas contra o salazarismo, da mesma maneira que
a esquerda democrática não se define apenas contra a direita, mas contra o
comunismo. O facto de o PS, o PSD e o CDS serem partidos democráticos,
incompatíveis com as correntes anti-democráticas de direita e de esquerda, tem
este efeito: conforme o governo é dirigido pelo PS ou pelo PSD, as políticas
públicas podem mudar, mas o regime não. A alternância entre esquerda e direita
democráticas faz-se assim sem dramas. A partir do momento em que o PS deixasse
de fazer fronteira com a esquerda que recusa a democracia pluralista e a
integração europeia, tudo seria diferente. Votar no PS significaria o quê?
Votar pela permanência no euro, ou pela saída do euro? Ninguém teria a certeza.
Não haja dúvidas: um governo
dos derrotados de 4 de Outubro, que incluísse partidos que negam os fundamentos
da actual democracia, provocaria uma imensa revolta no país. E tudo isto, para
quê? Para que António Costa, depois de uma derrota inesperada, possa manter o
lugar de secretário-geral do PS, do qual depende a sua sobrevivência como
político profissional. É essa a única razão. Para defender o lugar, Costa
precisa de chegar ao congresso do PS como primeiro ministro. Com esse fim, está
disposto a sacrificar tudo e todos. Assim acabam os partidos, e assim acabam
também os regimes.
1 comentário:
Que terá a dizer a isto o político Mário Soares, que na Fonte Luminosa (bem certo que por instigação de Salgado Zenha, a quem depois esfaqueou ao jeito do que Costa fez a Seguro) se opôs ao totalitário Cunhal e seus apaniguados? Se nada disser perceber-se-á então que naquela altura Soares não visava a liberdade, mas sim chegar ele ao Poder, sempre ao Poder pessoal do soarismo. E ficará desmascarado este político que muitos descrevem como cínico e ávido de mando, um verdadeiro pseudo-democrata hipócrita e maléfico. Eu creio que a História vai ser dura para com Soares, pois à História eles não escapam!
Troufa de Barros
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