Escher, Balcão
Julguei interessante transcrever este texto que Margarida Bentes Penedo, publicou aqui, quatro anos atrás.
«Os centros
históricos das cidades portuguesas têm vindo a morrer.
Sucessivos
governos, tanto centrais como locais, não conseguiram resistir a duas tentações
perigosas. A primeira foi a da promiscuidade com os grandes
promotores imobiliários. A segunda foi "deixar obra". Uma e
outra conduziram ao desvio de massa construída para os subúrbios das cidades,
onde havia espaço. Não só havia espaço como este era relativamente barato.
Compravam-se terrenos agrícolas, faziam-se uns truques com os Planos Directores
Municipais, alteravam-se as manchas de ocupação, convertia-se aquilo em zona
urbana e estava encomendado mais um conjunto de fogos. O objectivo de fazer política
social de habitação à custa da banca arruinou o mercado de arrendamento e
elevou a aquisição de casa própria a níveis delirantes. Hoje ninguém consegue
pagar as prestações e olhamos para um país repleto de trambolhos devolutos.
Enquanto isto
acontecia, os centros históricos ficaram quase exclusivamente entregues à
iniciativa de particulares. Aí o Estado actuou de outra maneira. Criou
gabinetes técnicos (muitas vezes empresas municipais, as famosas Sociedades de
Reabilitação Urbana) destinados à defesa (contra quê?) das chamadas "zonas
sensíveis". Inventou toda a espécie de entraves ao licenciamento
urbanístico. Acrescentou a complexidade da regulamentação, a morosidade
das respostas, os valores absurdos das taxas e impostos e o último recurso
dos incompetentes: meter o nariz em tudo e colocar as decisões ao nível do
"gosto" (isto assim fica um bocadinho desenquadrado, ficava mais
bonito se as mansardas fossem em telha, porque é que não se tira este
revestimento e se põe antes um que seja mais a condizer com a "traça
antiga", etc.). Este "gosto" foi debatido de um lado da mesa por
arquitectos municipais que nunca exerceram a profissão, e do outro lado por
artistas saídos em tabuleiros das dezenas de faculdades de arquitectura que, com
a escassez de trabalho e deficiência de formação, estavam desejosos de
"deixar marca". Assim nasceram uma série de híbridos negociados de
forma a garantir que o resultado final era caríssimo, ia contra a vontade de
todos e tinha o parecer favorável das entidades competentes. Quem se meteu
nisso uma vez, raramente repetiu. Na impossibilidade de rentabilizar o seu
património, muitas vezes envolvido em processos complicados de natureza
cadastral, as pessoas foram desistindo. E o interesse público que o Estado
devia defender transformou-se em desinteresse generalizado.
Este processo
não se inverte com propostas pueris.
Importa que o
Estado comece por reabilitar os seu imóveis devolutos (em Lisboa, por exemplo,
é o maior proprietário). E para se dar ao respeito, tem que reabilitar estes
imóveis no mais absoluto cumprimento da legislação que obriga os particulares a
cumprir. Importa que o Estado cumpra também os prazos legalmente estipulados
para resposta aos pedidos de licenciamento. Que torne claros, públicos e
razoáveis os valores que cobra pelas operações urbanísticas. Que reforme a
legislação que regula a reabilitação de edifícios, designadamente a das
acessibilidades e a do comportamento térmico, de modo a garantir que a mesma
seja inteligível, aplicável e sensata. E que valide as opções conjuntas dos
proprietários e dos técnicos responsáveis pelos projectos e pelas obras,
limitando-se a fazer a verificação da conformidade regulamentar.
As cidades mais
interessantes, mais confortáveis e mais civilizadas evoluiram sempre de forma
orgânica, mais apoiadas na manutenção do que na construção. Responderam às
necessidades de cada geração sem impedirem que as gerações seguintes pudessem
responder às suas. Chama-se a isto sustentabilidade.
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