A interrogação é de Helena Matos, no Observador. E a minha, já agora.
«Ferro Rodrigues, contra os
usos e os costumes da democracia, torna-se presidente da Assembleia da
República.
José Sócrates apresenta-se
numa conferência como se fosse primeiro-ministro e compara-se a Luaty Beirão.
António Costa prepara-se para
fazer um acordo com o PCP e o BE, defende que tal corresponde “a deitar abaixo
o resto do muro de Berlim” e declara que “os socialistas nenhuma lição têm a
receber do professor Aníbal Cavaco Silva”.
O PS considera que a indigitação
de Passos “faz o país perder tempo” e promete construir uma “muralha de aço”
nos próximos dias.
…
Não, não é um manicómio em
autogestão. É apenas um país a entrar no modo de funcionamento do populismo
revolucionário. Vivermos esta degradação do regime tornou-se inevitável desde
que António Costa percebeu que assegurava a sua sobrevivência política caso
tirasse o PS do arco da governação e o colocasse numa frente popular.
Desde esse momento o país
mudou e ficou condenado a mudar muito mais. Não falo da dívida, dos impostos,
do crescimento económico ou do desemprego. Falo de algo muito mais profundo e
determinante. Falo de valores, de moral, de bom senso e de civilidade. O
espírito de frente popular é incompatível com tudo isso. Ou mais concretamente
tem uma visão instrumental de tudo isso.
Tornar aceitáveis os
procedimentos mais abstrusos, os comportamentos mais questionáveis e as opções
mais contraditórias é a mecânica quotidiana dos chamados processos
revolucionários: o que hoje é mau amanhã é bom. Tudo é urgente e tudo pode logo
ser esquecido. O sentido de ridículo desaparece. O de decência também.
Os países partem-se em dois,
o que era habitual torna-se de repente uma excentricidade ou um vício: o
presidente da Assembleia da República era do partido vencedor das eleições?
Pois era. Agora deixou de ser. Até agora convidava-se a formar governo o líder
do partido mais votado. De agora em diante ou quando a frente popular achar
conveniente, esse procedimento torna-se desnecessário, inútil, uma perda de tempo,
um formalismo… Se amanhã lhes convier voltar ao que estava instituído
arrancarão as vestes de indignação com a simples hipótese de alteração das
regras. Se algum ingénuo lhes lembrar que foram precisamente eles que as
alteraram imediatamente será acusado de estar sempre a falar do passado, de ser
um ressentido, de não querer discutir o presente…
Que as pessoas que agora
defendem este modo de proceder tenham dito precisamente o contrário até há duas
semanas não interessa nada porque a primeira regra a fixar quando se passa a
viver sob o regime das frentes é que os procedimentos não são baseados na
legitimidade mas sim na capacidade de os apresentar como justificáveis naquele
preciso momento e para aquele preciso momento. No frentismo a justificação instantânea
cumpre o papel dos valores.
E é no frentismo que nós já
estamos a viver. E porque o estamos a viver não reagimos à megalomania de
Catarina Martins que anda há duas semanas a comportar-se como se fosse
presidente da República, chefe de Governo e líder do PS (só o PCP escapou aos
anúncios urbi et orbi da líder do BE) e ao papel de “faz de
conta que sou negociador” representado por António Costa: à direita não
negociou porque não quis, à esquerda não negociou nem negoceia porque já não
pode (Costa precisa muito mais do PCP e do BE do que estes dele.) E ficamos em
estado de anomia perante a patética performance representada por Sócrates que
ontem se via Mandela, hoje Luaty e amanhã, quem sabe, de volta à política (até
quando se podem apresentar candidaturas à Presidência da República?).
Como é claro tudo isto vem
acompanhado de múltiplas explicações reconfortantes que cumprem o papel de
apaziguar as almas cúmplices.
Na verdade estas derivas
populistas só acontecem porque para lá daqueles que as apoiam convictamente
temos aquela simpática mole de gente que gosta de dizer (baixinho e com muitas
histórias dos bastidores) que está contra mas que tem de se ter cuidado para
não fazer o jogo de A ou B.
A última destas narrativas
diz-nos que no PS teria havido um sobressalto cívico caso a intervenção de
Cavaco Silva não tivesse sido tão dura. Reza a ainda a historieta que ao
ouvirem Cavaco Silva os críticos da actual liderança do PS resolveram de
imediato apoiar a eleição de Ferro Rodrigues e a estratégia de Costa.
Ah Catilinas do nosso tempo,
até quando abusarão não da da nossa paciência, que estamos condenados a tê-la,
mas sim dessa mania de fazer dos outros parvos?
Comecemos pelo óbvio: que
convicções são essas, refiro-me às dos críticos de Costa, que se desvanecem mal
ouvem o PR dizer o que todo o país sabe – existe a possibilidade de chegarem ao
governo partidos que votaram sempre contra os acordos básicos da democracia
portuguesa? E não votaram secretamente: orgulham-se disso e consta dos seus
programas.
O discurso de Cavaco só
chocou quem precisa de se mostrar chocado para manter a farsa das dúvidas e dos
críticos dentro do PS. Infelizmente o PS tornou-se um partido sem dúvidas e de
críticos calados muito antes de Costa ter chegado. Os socialistas calaram-se
perante a forma inqualificável como os seus dirigentes reagiram ao processo
Casa Pia. Depois calaram-se perante os desmandos de Sócrates. E agora vão
calar-se perante a estratégia de Costa.
Em todos estes momentos foram
arranjando histórias, justificações e teorias mais ou menos cabalísticas não
tanto para explicar o sucedido mas sobretudo o seu silêncio perante os factos.
Muitos deles sem explicação e alguns sem perdão.
Mas em todos esses momentos
os socialistas calaram e pactuaram. Porque não havia direito de o juiz A fazer
o que fez, de o jornal B escrever o que escreveu, de o Presidente dizer o que
disse… E vão continuar a pactuar e a calar. No fim, como aconteceu com a
descolonização sobre a qual os socialistas nunca fizeram uma reflexão sobre as
suas responsabilidades, transferindo as culpas para Cunhal, Salazar e Caetano,
tudo falhou e vai falhar por culpa dos outros. Quando esta frente se desfizer a
culpa vai ser de Cavaco que não estendeu a mão ao PS, de Passos que não quis
negociar, do PCP que não cedeu, do BE que não ajudou…
Quando vai acabar? Não sei.
Mas tenho uma certeza a esse respeito: todos estes truques que PS+PCP+BE estão
a usar para chegar ao poder serão exponenciados na hora de o deixar.
Para lá desta certeza tenho
também a esperança de que em França alguém seja capaz de fazer um discurso como
o de Cavaco caso os líderes do centro se sintam tentados a aliar-se a Marine Le
Pen.
E por fim tenho uma sugestão:
leiam os clássicos. Cícero, por exemplo na sua invectiva a Catilina.
Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa
paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que
extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio?
Nem a guarda do Palatino, nem a ronda nocturna
da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem,
nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o
aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os
teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada
todos estes que a conhecem?
Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que
fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem
convocaste, que deliberações foram as tuas?»
2 comentários:
Verdades como punhos, ou de como o PS se transformou numa associação de pequenos malandrins.
Maria Viveiros
Sim, mas o que Helena Matos refere como não menos importante do que a malandragem política que estrutura o PS, é a qualidade da maioria dos seus militantes de base, uma espécie de maria-vai-com quem pode alcançar o poder para se bandear com ele. Trata-se de uma falta generalizada de densidade humana dos militantes.
Não foi por acaso que Seguro se tornou no S-G logo a seguir à queda do Sócrates, com uma percentagem semelhante de votantes, embora representasse a oposição a este.
David Caetano
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