25 de outubro de 2015

"Até quando Catilina?"




A interrogação é de Helena Matos, no Observador. E a minha, já agora. 

«Ferro Rodrigues, contra os usos e os costumes da democracia, torna-se presidente da Assembleia da República.

José Sócrates apresenta-se numa conferência como se fosse primeiro-ministro e compara-se a Luaty Beirão.

António Costa prepara-se para fazer um acordo com o PCP e o BE, defende que tal corresponde “a deitar abaixo o resto do muro de Berlim” e declara que “os socialistas nenhuma lição têm a receber do professor Aníbal Cavaco Silva”.

O PS considera que a indigitação de Passos “faz o país perder tempo” e promete construir uma “muralha de aço” nos próximos dias.


Não, não é um manicómio em autogestão. É apenas um país a entrar no modo de funcionamento do populismo revolucionário. Vivermos esta degradação do regime tornou-se inevitável desde que António Costa percebeu que assegurava a sua sobrevivência política caso tirasse o PS do arco da governação e o colocasse numa frente popular.

Desde esse momento o país mudou e ficou condenado a mudar muito mais. Não falo da dívida, dos impostos, do crescimento económico ou do desemprego. Falo de algo muito mais profundo e determinante. Falo de valores, de moral, de bom senso e de civilidade. O espírito de frente popular é incompatível com tudo isso. Ou mais concretamente tem uma visão instrumental de tudo isso.

Tornar aceitáveis os procedimentos mais abstrusos, os comportamentos mais questionáveis e as opções mais contraditórias é a mecânica quotidiana dos chamados processos revolucionários: o que hoje é mau amanhã é bom. Tudo é urgente e tudo pode logo ser esquecido. O sentido de ridículo desaparece. O de decência também.

Os países partem-se em dois, o que era habitual torna-se de repente uma excentricidade ou um vício: o presidente da Assembleia da República era do partido vencedor das eleições? Pois era. Agora deixou de ser. Até agora convidava-se a formar governo o líder do partido mais votado. De agora em diante ou quando a frente popular achar conveniente, esse procedimento torna-se desnecessário, inútil, uma perda de tempo, um formalismo… Se amanhã lhes convier voltar ao que estava instituído arrancarão as vestes de indignação com a simples hipótese de alteração das regras. Se algum ingénuo lhes lembrar que foram precisamente eles que as alteraram imediatamente será acusado de estar sempre a falar do passado, de ser um ressentido, de não querer discutir o presente…

Que as pessoas que agora defendem este modo de proceder tenham dito precisamente o contrário até há duas semanas não interessa nada porque a primeira regra a fixar quando se passa a viver sob o regime das frentes é que os procedimentos não são baseados na legitimidade mas sim na capacidade de os apresentar como justificáveis naquele preciso momento e para aquele preciso momento. No frentismo a justificação instantânea cumpre o papel dos valores.

E é no frentismo que nós já estamos a viver. E porque o estamos a viver não reagimos à megalomania de Catarina Martins que anda há duas semanas a comportar-se como se fosse presidente da República, chefe de Governo e líder do PS (só o PCP escapou aos anúncios urbi et orbi da líder do BE) e ao papel de “faz de conta que sou negociador” representado por António Costa: à direita não negociou porque não quis, à esquerda não negociou nem negoceia porque já não pode (Costa precisa muito mais do PCP e do BE do que estes dele.) E ficamos em estado de anomia perante a patética performance representada por Sócrates que ontem se via Mandela, hoje Luaty e amanhã, quem sabe, de volta à política (até quando se podem apresentar candidaturas à Presidência da República?).

Como é claro tudo isto vem acompanhado de múltiplas explicações reconfortantes que cumprem o papel de apaziguar as almas cúmplices.

Na verdade estas derivas populistas só acontecem porque para lá daqueles que as apoiam convictamente temos aquela simpática mole de gente que gosta de dizer (baixinho e com muitas histórias dos bastidores) que está contra mas que tem de se ter cuidado para não fazer o jogo de A ou B.

A última destas narrativas diz-nos que no PS teria havido um sobressalto cívico caso a intervenção de Cavaco Silva não tivesse sido tão dura. Reza a ainda a historieta que ao ouvirem Cavaco Silva os críticos da actual liderança do PS resolveram de imediato apoiar a eleição de Ferro Rodrigues e a estratégia de Costa.

Ah Catilinas do nosso tempo, até quando abusarão não da da nossa paciência, que estamos condenados a tê-la, mas sim dessa mania de fazer dos outros parvos?

Comecemos pelo óbvio: que convicções são essas, refiro-me às dos críticos de Costa, que se desvanecem mal ouvem o PR dizer o que todo o país sabe – existe a possibilidade de chegarem ao governo partidos que votaram sempre contra os acordos básicos da democracia portuguesa? E não votaram secretamente: orgulham-se disso e consta dos seus programas.

O discurso de Cavaco só chocou quem precisa de se mostrar chocado para manter a farsa das dúvidas e dos críticos dentro do PS. Infelizmente o PS tornou-se um partido sem dúvidas e de críticos calados muito antes de Costa ter chegado. Os socialistas calaram-se perante a forma inqualificável como os seus dirigentes reagiram ao processo Casa Pia. Depois calaram-se perante os desmandos de Sócrates. E agora vão calar-se perante a estratégia de Costa.

Em todos estes momentos foram arranjando histórias, justificações e teorias mais ou menos cabalísticas não tanto para explicar o sucedido mas sobretudo o seu silêncio perante os factos. Muitos deles sem explicação e alguns sem perdão.

Mas em todos esses momentos os socialistas calaram e pactuaram. Porque não havia direito de o juiz A fazer o que fez, de o jornal B escrever o que escreveu, de o Presidente dizer o que disse… E vão continuar a pactuar e a calar. No fim, como aconteceu com a descolonização sobre a qual os socialistas nunca fizeram uma reflexão sobre as suas responsabilidades, transferindo as culpas para Cunhal, Salazar e Caetano, tudo falhou e vai falhar por culpa dos outros. Quando esta frente se desfizer a culpa vai ser de Cavaco que não estendeu a mão ao PS, de Passos que não quis negociar, do PCP que não cedeu, do BE que não ajudou…

Quando vai acabar? Não sei. Mas tenho uma certeza a esse respeito: todos estes truques que PS+PCP+BE estão a usar para chegar ao poder serão exponenciados na hora de o deixar.

Para lá desta certeza tenho também a esperança de que em França alguém seja capaz de fazer um discurso como o de Cavaco caso os líderes do centro se sintam tentados a aliar-se a Marine Le Pen.

E por fim tenho uma sugestão: leiam os clássicos. Cícero, por exemplo na sua invectiva a Catilina.


Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há-de precipitar a tua audácia sem freio?

Nem a guarda do Palatino, nem a ronda nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem?

Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?»

2 comentários:

Anónimo disse...

Verdades como punhos, ou de como o PS se transformou numa associação de pequenos malandrins.

Maria Viveiros

Anónimo disse...

Sim, mas o que Helena Matos refere como não menos importante do que a malandragem política que estrutura o PS, é a qualidade da maioria dos seus militantes de base, uma espécie de maria-vai-com quem pode alcançar o poder para se bandear com ele. Trata-se de uma falta generalizada de densidade humana dos militantes.
Não foi por acaso que Seguro se tornou no S-G logo a seguir à queda do Sócrates, com uma percentagem semelhante de votantes, embora representasse a oposição a este.

David Caetano