Maria de Fátima Bonifácio dizia ontem assim, no Observador:
«Parto para a análise da
intrincadíssima situação em que o País mergulhou, pela mão traiçoeira de Costa,
de quatro dados que ou têm sido omitidos ou pouco valorizados. São, para mim,
dados essenciais e decisivos. Essenciais significa essenciais. Decisivos significa
que determinaram tudo até agora e continuarão a determinar no futuro. Apenas
não sei qual é o limite temporal deste futuro, nem qual será o seu desfecho.
Esses dados são:
1º. Costa é um homem
absolutamente desesperado.
2º. Costa já não tem nada, mas
mesmo nada de nada a perder.
3º. Tudo o que não seja
chegar a primeiro ministro não basta para o salvar.
4º. Costa não tem carácter,
não é homem de palavra, não olha a meios.
O desespero é mau conselheiro
em todas as circunstâncias. No caso de Costa, em que o desespero ainda por cima
se conjuga com o vexame pessoal, a primeiríssima prioridade do ex-Messias é
salvar a sua pele, custe o que custar, doa a quem doer, pague quem pagar. País,
partido, eleitores e simpatizantes foram banidos do perímetro das suas
preocupações, no interior do qual ele esbraveja como um náufrago para se
salvar. Está disposto a tudo, a renegar tudo, a arrasar tudo, desde que ele se
erga dos escombros – e escombros já há – e possa anunciar: venci todos, ganhei
tudo! Da plateia do seu palco imaginário, o PCP e o Bloco soltarão uma sonora
gargalhada. O triunfo anunciado por Costa repousa por inteiro nas mãos deles.
No momento propício e oportuno para cada um destes dois adversários entre si,
cada um deles lhe puxará o tapete para que todos possam ver que “o rei vai nu”.
Costa já não tem nada a
perder. Jogou tudo, apostou tudo naquele fatídico dia em que escarneceu da
vitória “poucochinha” por que Seguro ganhara as europeias à Coligação. Ficou
obrigatoriamente comprometido com o imperativo irrevogável de lhe contrapor um
triunfo esmagador nas legislativas de 2015. Durante um ano andou levado em
ombros, empunhando a taça dos vencedores, muito antes de ter vencido e de a
batalha começar. Perdeu abjectamente. A muito ténue esperança que lhe restava
(ou já nem isso ?) a poucos dias do 4 de Outubro transmutou-se num ápice numa
tormenta. O vexame era insuportável. De uma penada, perdia um curriculum de
décadas, o sonho de uma vida, um presente triunfal, e diante de si abria-se um
futuro vazio. É formado em Direito, mas não é jurista, e teria de recomeçar a
advocacia por um segundo estágio. Não exerce profissão para que se possa virar.
Aos cinquenta e quatro anos já não se pode começar nada. Sem um passado sobre o
qual se continue a construir para a frente, o resto da vida não passará de um
frustrante remedeio. Ou seja, não é vida. A solução para este desastre pessoal
surgiu rápida: não vencera as eleições, mas ainda podia vencer o eleitorado.
Nos dias que se seguiram ao
tétrico veredicto das urnas, Costa entrou na sua, muito dele, “espiral
labiríntica”. Em abono da verdade, já antes dera sinais: anunciara que
chumbaria qualquer Orçamento de Estado que a Coligação apresentasse, no caso,
enunciado como mera hipótese académica, de o “seu” PS não vencer com a maioria
absoluta que diariamente implorava aos portugueses. Na noite televisiva, Costa
apresentou-se amarelado e com ar grave. Declarou que não faria “coligações
negativas”, das que servem só para bota-abaixo. Mas não tardou a ser ele mesmo:
com sorriso aberto e ar galhofeiro, garantiu à audiência que não se demitiria…
Percebeu-se que se extinguira nele qualquer vestígio, ténue ou remoto, da mais
elementar dignidade. E logo a partir de 5 de Outubro percebeu-se também, à
medida que muitos socialistas começavam a rosnar, que em seu entender havia uma
única coisa que o poderia ainda salvar: chegar, efectivamente, a primeiro-ministro de Portugal.
Tudo o que fosse um milímetro menos disto não bastava, não dava para as
necessidades (já direi quais eram). Tornar-se o mero líder de uma bancada
comprometida com um “entendimento” com o governo Passos Coelho/Paulo Portas?
Nem pensar.
Vamos então pôr mãos à obra e
vencer o eleitorado. Um político honrado não faz uma coisa tão feia? Mas Costa
já fizera coisas feíssimas! Como acontece com qualquer droga, o pior é começar:
o vício entranha-se e naturaliza-se imediatamente. Em Fevereiro de 2013
assinara com Seguro o Documento de Coimbra, “Portugal Primeiro”, para o qual
disse que tinha contribuído e no qual também disse que se revia. Deu “os
parabéns” a Seguro pelo “entendimento” a que se chegara e desistiu da sua
candidatura a secretário-geral. Este documento de orientação estratégica,
assinado por Costa e Seguro, foi aprovado pela Comissão Política do PS e
serviria de base à moção de estratégia aprovada no Congresso do PS de 26-28 de
Abril. Costa discursou: “Estamos aqui juntos, juntos somos fortes, juntos somos
imbatíveis, juntos venceremos tudo: autárquicas, europeias e legislativas.”
Oito meses depois, em Janeiro
de 2014, Costa rasga o Documento de Coimbra assinado por si, renuncia ao
mandato de Presidente da CMP que jurara cumprir até ao fim. E o resto já toda a
gente sabe: ganhou por margem albanesa as primárias e defenestrou Seguro do
Rato. Calçou os patins e durante algum tempo encontrou piso liso e
desembaraçado. Ao primeiro teste à sua envergadura, falhou logo. António Nóvoa
saiu-lhe ao caminho com muita poesia, candura e total abertura: outro homem
disposto a tudo para chegar a Belém, com poucos escrúpulos (não sabia se era
crente, nem se gostava mais do PS ou do PC), muitíssima ambição disfarçada de
modéstia, e completa abertura: venha um governo de esquerda, acabe-se com esse
aberrante “arco da governação”. Problema: Nóvoa dividia o PS. Solução: um dia
sim, outro dia não. Nóvoa ficou a cozer em lume brando para o que desse e
viesse. E ainda hoje não se fartou de servir de roda sobresselente; outro homem
de carácter.
Costa contratou Centeno para
lhe dar números que ele não percebia. Who cares? Tinha números, tratava as
coisas a sério. O generoso programa assente em tão claros números era sólido.
Provavam matematicamente que a austeridade era dispensável sem com isso
comprometer as obrigações para com a Europa, o Euro e o Tratado Orçamental. Mas
a esquerda dentro do PS logo descobriu, sob o fresco verniz socialista de
Centeno, um economista neo-liberal. Disto mesmo se queixava o Bloco, e também o
PC: Costa não tinha a coragem de “cortar com as políticas de direita” com que o
PS desde sempre andara amancebado. Costa encheu-se de mais coragem. A poucos
dias do fim da campanha eleitoral deu uma valente guinada para a
extrema-esquerda. E no dia seguinte às eleições perdidas, encheu-se da coragem
toda: declarou guerra contra os eleitores.
Tenho-o visto como os grandes
campeões de xadrez que se deslocam de mesa em mesa jogando com vários parceiros
ao mesmo tempo. Mas Costa não é campeão de nada (com a possível excepção de um
sórdido tacticismo). Transformou-se num pedinte que mendiga apoio para um
governo seu. Renega a Tradição do PS como fronteira da liberdade e arrasta o
partido pelo chão até às moradas dos seus piores inimigos. Nada disto o
envergonha. E, espantosamente, não lhe ocorre que o feitiço se possa virar
contra o feiticeiro. A primeira porta a que bateu foi a do PC, catedrático da
astúcia estalinista. Jerónimo, aconselhado pelo ainda mais indefectível
Francisco Lopes, mostrou-se afável, tolerante, aberto, com a singela condição
de que o PS “corte com as políticas de direita” que ao longo das décadas têm
feito dele um servo do Capital. Costa saiu satisfeito, a reunião foi “muito
positiva”. Ou seja, muito naturalmente, da noite para o dia, o PCP fizera uma
transfusão de sangue e eliminara Cunhal, a Tradição e Toda a Tralha
Estalinista. Costa meteu-se pela boca do lobo dentro e pediu o Diabo em
casamento. Mas necessita de bigamia, porque os deputados comunistas não bastam.
Amanhã, segunda, ainda terá de levar o PS a rastejar até à morada do Bloco.
Disse que já havia escombros.
O PS sempre foi um partido com uma ala mais centrista e uma ala mais a puxar à
esquerda. Sócrates deixou lá dentro uma facção própria que complicou esta
antiga arrumação a que todos estavam habituados. Mas com António Costa, o
Partido Socialista está inextricavelmente balcanizado: são os socratistas, os
alegristas, os seguristas, os galambistas, os soaristas de Mário e de João
Soares, alguma “tralha guterrista”, e, surpresa das surpresas, os novíssimos
“nunistas”. Sim, nunistas, uma seita ruidosa cujo representante máximo, um tal
Pedro Nuno Santos, Costa leva sempre consigo na augusta delegação socialista
que peregrina pelas outras sedes partidárias. Galamba há muito que se
celebrizou por ser sempre uma espinha cravada da garganta de qualquer moderado.
De Nuno Santos só me lembro do momento em que berrou no Parlamento, com
hercúlea coragem, “Quero lá saber da Troika ou da Europa!” Pelos vistos,
singrou. Finalmente, há pelo menos ainda um grupo de “costistas”. Mas quem são,
afinal, os costistas? Indaguei junto dos meus amigos socialistas (que são a
maioria). Ninguém me soube dizer ao certo. Concluí, portanto, por minha conta e
risco. “Costistas” são todos aqueles que se servem de António Costa para que
ele usurpe o poder contra o eleitorado e lhes devolva a “importância”, os
“lugares”, as prebendas e o acesso ao “spoils system” a que já se tinham
habituado. Uma excepção honrosa cumpre desde já destacar: Sérgio Sousa Pinto
não teve estômago para semelhante caldeirada. Demitiu-se ontem do secretariado
do PS.
Toda esta tropa heterogéna só
perdoará a Costa a hecatombe em que lançou o partido se for transitória e
rapidamente invertida. Costa carece do seu apoio para conferir existência
coerente ao “costismo” e dispor de novo de um partido submetido à sua
autoridade, que aliás nunca chegou a ser indiscutível. Para tanto, precisa de
ser primeiro-ministro. Menos um milímetro do que isto já não lhe chega para
salvar a sua pele. Pague quem pagar, pague o PS e o País todo. Porque se lá
chegar, a história ainda estará muito longe de terminada.»
2 comentários:
Como um par de comentadores haviam referido antes das eleições, Costa é muito mais perigoso do que Sócrates foi, pois este apesar dos problemas em que se envolveu nunca se vendeu,pela sobrevivência pessoal política, aos totalitários comunistóides. Costa não é como o outro um duro, mas apenas um oportunista de baixo estofo capaz de prejudicar o país e o seu próprio partido pelo prato de lentilhas de uma efémera e possivelmente inalcançável governação consistente. Um político sem relevo e sem dignidade, um produto apenas de uma ideologia execrável, a do mando doa a quem doer. O país e a História julgá-lo-ão sem complacencias, mas é o que gente como ele merece.
Helder Lampreia
Facto saliente e significativo é o silencio clamoroso do oportunista Mário Soares, ele que se desdobrava em declarações, em textos do mais acabado arrivismo e em visitas ao eventual delinquente de direito comum. Creio que caberia aqui na perfeição a consagrada expressão "calado que nem um rato". Eu só não a equaciono nem a digo porque podiam sugerir-se trocadilhos de mau gosto,nomeadamente trocando a palavra rato por ratazana. E isso seria talvez injusto para com o antigo adversário do estalinismo, mesmo sabendo-se que foi Salgado Zenha quem o forçou a definir-se, quando ele até se disponibilizava a coabitar com Cunhal, esse grande democrata e grande amigo do Pacto de Varsóvia...
Troufa de Barros
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