A quem, como eu, assistiu ao debate entre Pedro Passos Coelho e António Costa na passada quarta-feira, não foi preciso preciso chamar a atenção para o forte nervosismo do socialista (seja lá o que isso signifique para ele), trocando ou acrescentando amiúde sílabas estranhas às palavras com que se engasgava, os papéis com gráficos para iluminar o povo sacudidos pelo tremor das mãos. O primeiro-ministro não teve dúvidas nem quanto às respostas a dar-lhe nem quanto a deixar que aquela triste cena falasse por si. E falou.
E toda a gente viu, ouviu. Toda a gente menos, é claro, os comentadores que... bem, Alberto Gonçalves disse hoje exemplarmente no DN o que há a dizer sobre o assunto em duas crónicas, e eu agradeço-lhe o ter-me poupado o trabalho. Aqui as deixo.
Depois do debate
Ao longo da quarta-feira, as televisões
trataram o programa do serão como tratam os desafios de futebol, incluindo
(juro) os indispensáveis inquéritos a transeuntes sobre os
"prognósticos" para o jogo, perdão, o debate. Só faltaram as célebres
filmagens dos autocarros a caminho do estádio, perdão, do estúdio, de modo a
envolver o espectador em pleno ambiente da bola. Não faltou o intervalo. Não
faltou a flash interview. E não faltou António Costa, que à semelhança dos
comentadores do ramo se fingiu frequentemente indignado, puxou de bonitos
papéis e recorreu ao truque mais infantil das discussões do género: o
não-vale-a-pena-exaltar-se, sobretudo quando Pedro Passos Coelho praticamente
adormecera, é um artifício que só não envergonha os fanáticos.
E os fanáticos, ou os convertidos à partida, não têm
vergonha nenhuma. Mal terminou o debate, correram a decretar a estrondosa
vitória do Dr. Costa com o alívio de quem começava a perder a esperança nas
"legislativas". Não é por acaso: durante hora e meia, o Tsipras
indígena (a comparação é do Telegraph de Londres) conseguiu desfiar as suas
extraordinárias patranhas quase sem contraditório do adversário, o qual, não
sei se o referi, estava a dormir. Ao Dr. Passos Coelho, cujas limitações não
são pequenas, bastava deixar claro o absurdo que é um destacado cúmplice da
bancarrota regressar com promessas de novo desastre. Ou lembrar que a
portentosa "gestão" da Câmara de Lisboa, salva à custa do Estado, é
no mínimo uma mentira cabeluda. O resto ficaria por conta do próprio Dr. Costa,
que louva imenso a "lusofonia" e fala um português assaz carenciado.
Contas feitas, o debate suscitou dois mistérios e um avanço
civilizacional. O primeiro mistério é a apatia do Dr. Passos Coelho, que sempre
possui meia dúzia de indicadores económicos amáveis, se bem que precários, para
atirar ao currículo socialista de miséria e fraude. O segundo mistério é o
facto de as desconchavadas lendas do menoríssimo Dr. Costa ainda convencerem
muitos cidadãos que não os cidadãos que dele esperam uma nomeação, um emprego,
um pratinho na extremidade da mesa do poder. O mérito do debate passa por José
Sócrates.
No país invertido que habitamos, houve jornais e analistas
que atribuíram ao ex-primeiro-ministro a grande vitória da noite. Falharam por
pouco: José Sócrates foi evidentemente o maior derrotado. Viram o que eu vi? O
Dr. Passos Coelho ocupou metade do tempo a associar, com legitimidade, o Dr.
Costa ao "engenheiro". O Dr. Costa ocupou a metade restante a negar,
sem legitimidade, as acusações. E não resistiu a uma graçola que no fundo
achincalha menos o destinatário do que o sujeito: "Porque é que não vai lá
a casa debater com ele? Tem tantas saudades..." Aliás, depois do debate,
diversas "personalidades" socialistas - e conhecidos devotos
"socráticos" - aderiram ao folguedo e usaram a insistência em José
Sócrates para tentar diminuir o Dr. Passos Coelho. Na verdade, as chalaças
plantadas nas ditas "redes sociais" diminuem José Sócrates, que
devagarinho alcançou o prestígio da peçonha. Noventa minutos televisivos
pareceram sugerir o que nove meses de cadeia e anos de trapalhadas prometiam: a
morte política de um homem abaixo de qualquer suspeita. Veremos.
Por enquanto, vemos o Dr. Costa, que José Sócrates abomina
em privado e "apoia" em público, dispor de um futuro radioso a trocar
argumentos por conversa fiada no Tempo Extra, na Quadratura do Círculo, no Trio
de Ataque ou em qualquer outro desses debates futebolísticos. Ou, se Deus Nosso
Senhor for excessivamente sarcástico, no cargo de primeiro-ministro. Com sorte,
já terá havido pior. E não é preciso citar o nome.
Da liberdade ao Rato
Falou-se imenso do debate em que três
"moderadores" amigos (e, até certo ponto, Pedro Passos Coelho)
deixaram António Costa à vontade para vender bugigangas. Por motivos evidentes,
falou-se muito menos da entrevista do dia seguinte, na RTP, em que o Dr. Costa
passou o tempo a acusar o jornalista Vítor Gonçalves de estar ao serviço do
PSD. O lendário humanismo dos socialistas, decerto inspirado pela bonomia do
seu fundador, tem tendência a exasperar-se com perguntas a sério e com o
contraditório em geral. Faz sentido: se a moda pegasse, qualquer dia o Dr.
Costa seria obrigado a reconhecer que o universo feliz e copioso das suas
propostas (?) não possui a mais vaga relação com a realidade - isto admitindo
que ele consegue notar a diferença.
Depois do pedagógico sms a um director adjunto do Expresso,
há meses, fica definitivamente estabelecido o estilo do Dr. Costa, e fica
provado que as semelhanças com José Sócrates não se esgotam no "modelo
económico" (eufemismo para ruína). Esqueçam as promessas de leite e mel: a
acontecer, o regresso do PS será sobretudo o regresso a isto, à intimidação, à
ameaça, à intolerância e em suma ao convívio complicado com os pressupostos da
liberdade. O governo em vigor esfola-nos através do fisco? Prefiro que me
aliviem o bolso do que me calem a boca, para cúmulo quando a segunda habilidade
é opcional e, apesar dos pantomineiros que juram o contrário, a primeira não.
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