Quando um branco mata um negro, como às vezes acontece com
alguns polícias excessivamente nervosos nos EUA, a sentença popular é imediata:
trata-se, obviamente, de racismo. Quando, como aconteceu na quarta-feira, um
negro mata dois brancos, filma os homicídios e despeja tudo no Twitter para
efeitos de consagração, a coisa complica-se: o homem, para cúmulo, gay, era
capaz de ser vítima de discriminação, o que legitima parcialmente o crime. O
resto legitima-se com o direito de posse de armas, pelo que há que julgar a
Constituição e prender o revólver.
Em matéria de malabarismo mental, não faltam casos
parecidos. O terrorista do comboio francês, por exemplo, apenas queria roubar
para comer. Pelo menos é o que jura a advogada dele, que descreve um homem
miserável e subnutrido. Esqueceu-se de descrever de que maneira é que tamanha
penúria económica e física permite adquirir e transportar uma Kalashnikov de
600 euros e três quilos. Mas o principal é que a culpa é da exclusão social, ou
seja, da sociedade, ou seja, sua e minha. Por mim, estou disposto a confessar
tudo e a acatar o merecido castigo.
Entretanto, lembro a curiosa retórica com que se recebe os
refugiados que dia após dia chegam pelo Mediterrâneo e por onde calha. Segundo
a voz corrente nos media, a responsabilidade pela tragédia (humanitária, é de
bom-tom acrescentar) cabe inteirinha à Europa, a Europa que não recebe
devidamente, a Europa que não integra adequadamente, a Europa que, em suma, não
corresponde impecavelmente aos sonhos daqueles desgraçados,
disponibilizando-lhes em cinco minutos casa decente, emprego digno, subsídio de
assimilação e banda filarmónica. Os telejornais fervilham de repórteres a
apontar o dedo indignado.
Quase ninguém explica que as dificuldades de resposta da
Europa são inevitáveis perante a brutal, e desde há décadas incomparável,
migração de centenas de milhares de pessoas (350 mil em 2015). Quase ninguém
recorda que as dúvidas europeias são as próprias de gente civilizada, que tende
a ponderar as consequências dos seus actos. Quase ninguém nota que a Alemanha,
logo a Alemanha, tem liderado com a generosidade possível o processo de
acolhimento. Quase ninguém refere a veneração que inúmeros sírios passaram a
dedicar à senhora Merkel, logo à senhora Merkel. Sobretudo quase ninguém
informa que os refugiados, na imensa maioria muçulmanos, escapam precisamente
da selvajaria hoje recorrente nos países de origem e na religião que professam.
Apesar do folclore jornalístico em contrário, que atribui ao bombeiro o fogo
posto pelo pirómano, a verdade é que o drama dos refugiados começa no Islão,
não na Europa.
A benefício da subtileza, também poderíamos falar dos
refugiados que são de facto "infiltrados" do ISIS e agremiações
similares. E dos refugiados que matam refugiados sob acusações de cristianismo.
E dos perigos de abordar estas matérias com mais lirismo adolescente do que
sensatez. Porém, dado que andamos ocupadíssimos a odiarmo-nos, não há tempo
para detalhes. O importante é estabelecer que a culpa é nossa. Culpa de quê?
Vê-se depois, ou nem isso. Certo é que a Europa é de fugir, embora os outros
misteriosamente fujam para a Europa.
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