23 de novembro de 2015

Da poesia fala o poeta - 4


João Garção (n. 1968)

Poeta, pintor, ensaísta e professor. Foi futebolista profissional (guarda-redes) na Académica de Coimbra. Autor de “Sobre Raul Proença”, “Pequenos ensaios” e “Os versos do Zé Povão”. No prelo, com chancela da “Apenas Livros”, sairá em breve “O teatro surrealista em Portugal”, com prefácio de António Cândido Franco.


Do poeta diz o poema.


AGUARELA

Na minha terra, quando eu era pequeno
havia montanhas altas com bosques e recantos
pelo menos um Oceano com piratas e segredos
e muitas outras coisas que se transfiguravam

Os heróis eram altos, atléticos, usavam duas cores
e parece que havia uns outros sobrados da Grande Guerra

A velhota gorda que vendia castanhas no largo do Rossio
pertencia a uma misteriosa quadrilha francesa
falava alto, tratava os fregueses pelo nome
aparecia e desaparecia consoante era Inverno ou Verão

No dia de Santos o gajo das barbas (que tinha um tesouro escondido)
dava-nos nozes, se lhe batíamos à porta
e havia alguns, corajosos, que batiam

Havia um espanhol que era barbeiro
mas as tesouras cantavam em português

Os polícias passavam, nas tardes de Primavera
muito suaves, devagarinho, rua do Comércio abaixo
quando não era pela Corredoura acima

Pareciam anjos vestidos de azul claro

Só muito mais tarde notei que usavam cassetete

Como eu gostava da Escola! E ainda por cima
os professores era tudo gente esperta

Não havia, que eu soubesse, pessoas infelizes
e os bandidos só faziam serviço no “Tintin”
ou nos filmes (poucos) da televisão

Mas as coisas, como nas fitas, parece que às vezes
andam demasiado depressa.

Os heróis – os mais velhos morreram –
tinham estado, coitados, com o Milhões na França
e os que eram às cores transformaram-se em futebolistas
com o remate trocado

A mulher das castanhas foi um ar que lhe deu:
finou-se com um colapso e era avó de três netos
como ela trabalhadores da fábrica da rolha


Os anjos que eram polícias já só andam de carro
e um deles até me ofendeu, um dia, junto a um Bar

Alguns dos professores ficaram com orelhas de burro

E nesta coisa de crescer, o que mais (juro-vos) me dana
é que agora corto o cabelo num cabeleireiro de homens
que competentemente me afeita (enquanto leio o jornal)


com um aparelho que rosna como um rafeiro sem classe.

1 comentário:

Anónimo disse...

Um belíssimo poema!

David Caetano