João Garção (n. 1968)
Poeta, pintor, ensaísta e professor. Foi
futebolista profissional (guarda-redes) na Académica de Coimbra. Autor de “Sobre
Raul Proença”, “Pequenos ensaios” e “Os versos do Zé Povão”. No prelo, com chancela da “Apenas Livros”,
sairá em breve “O teatro surrealista em Portugal”, com prefácio de António
Cândido Franco.
Do poeta diz o poema.
AGUARELA
Na minha terra,
quando eu era pequeno
havia montanhas
altas com bosques e recantos
pelo menos um
Oceano com piratas e segredos
e muitas outras
coisas que se transfiguravam
Os heróis eram
altos, atléticos, usavam duas cores
e parece que
havia uns outros sobrados da Grande Guerra
A velhota gorda
que vendia castanhas no largo do Rossio
pertencia a uma
misteriosa quadrilha francesa
falava alto,
tratava os fregueses pelo nome
aparecia e
desaparecia consoante era Inverno ou Verão
No dia de Santos
o gajo das barbas (que tinha um tesouro escondido)
dava-nos nozes,
se lhe batíamos à porta
e havia alguns,
corajosos, que batiam
Havia um
espanhol que era barbeiro
mas as tesouras
cantavam em português
Os polícias
passavam, nas tardes de Primavera
muito suaves,
devagarinho, rua do Comércio abaixo
quando não era
pela Corredoura acima
Pareciam anjos
vestidos de azul claro
Só muito mais
tarde notei que usavam cassetete
Como eu gostava
da Escola! E ainda por cima
os professores
era tudo gente esperta
Não havia, que
eu soubesse, pessoas infelizes
e os bandidos só
faziam serviço no “Tintin”
ou nos filmes
(poucos) da televisão
Mas as coisas,
como nas fitas, parece que às vezes
andam demasiado
depressa.
Os heróis – os
mais velhos morreram –
tinham estado,
coitados, com o Milhões na França
e os que eram às
cores transformaram-se em futebolistas
com o remate
trocado
A mulher das
castanhas foi um ar que lhe deu:
finou-se com um
colapso e era avó de três netos
como ela
trabalhadores da fábrica da rolha
Os anjos que
eram polícias já só andam de carro
e um deles até
me ofendeu, um dia, junto a um Bar
Alguns dos
professores ficaram com orelhas de burro
E nesta coisa de
crescer, o que mais (juro-vos) me dana
é que agora
corto o cabelo num cabeleireiro de homens
que
competentemente me afeita (enquanto leio o jornal)
com um aparelho
que rosna como um rafeiro sem classe.
1 comentário:
Um belíssimo poema!
David Caetano
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