«Há, na política, mistérios insondáveis. No arranque do
debate do Programa de Governo confrontamo-nos com mais um desses mistérios:
porque é que o PS escolheu para abrir a ronda de perguntas ao primeiro-ministro
Pedro Nuno Santos?
Imagino que muitos leitores nem saibam muito bem quem
é Pedro Nuno Santos, uma vez que os partidos estão cheios de antigos
presidentes das jotas (como ele) e que há imensos presidentes de
distritais (ele preside à de Aveiro). Mas eu posso esclarecer: Pedro Nuno
Santos é aquele senhor alto, de barbas, que apareceu ao lado de António Costa
quando ele começou a sua “ronda” de negociações. Depois foi ele que ficou
encarregue da coordenação política das conversas com os partidos da esquerda.
Por fim, é também vice-presidente da bancada socialista. Um político em
ascensão, não se duvide.
Só que Pedro Nuno Santos não é só isto. É também o
mesmo deputado socialista que, em Dezembro de 2011, teve uma tirada que ficou
para história da forma irresponsável como o PS já nessa altura fazia
oposição. Vale a pena recordá-la: “Estou a marimbar-me para o banco alemão
que emprestou dinheiro a Portugal nas condições em que emprestou. Estou a
marimbar-me que nos chamem irresponsáveis. Temos uma bomba atómica que podemos
usar na cara dos alemães e dos franceses. Essa bomba atómica é simplesmente não
pagamos. Ou os senhores se põem finos ou não pagamos. E se não pagarmos e
se lhes dissermos, as pernas dos banqueiros alemães até tremem”. Assim, tal e
qual. Porventura pensando que não havia microfones por perto (falava num jantar
de Natal em Castelo de Paiva).
Pedro Nuno Santos, com esta e outras tomadas de
posição, sempre fez parte daquela parte da bancada socialista que muitas vezes
mostrava estar mais perto do Bloco de Esquerda do que do seu próprio partido –
fez mesmo um dos co-autores, com Francisco Louçã, de um
“Programa de reestruturação da dívida”. Assim esteve até que chegou António
Costa e ganhou mais visibilidade na formulação das políticas do PS. E até
que o mesmo António Costa lhe deu todo o protagonismo que tem vindo a
assumir neste pós-eleições. O resultado ficou ontem à vista numa das mais
desastradas intervenções parlamentares de que tenho memória em debates desta natureza.
Mas a falta de tino de Pedro Nuno Santos não valeria
uma nota de rodapé não se desse o caso de ele ser um dos que insiste em
grosseiras distorções da realidade para tentar demonstrar o indemonstrável. No
fundo o que ele fez ontem (e depois fizeram também deputados das bancadas do
PCP e do Bloco, para além do sempre inefável João Galamba, para quem os
décibeis que atira à cara – e aos ouvidos – dos adversários parecem ser
permanente fonte de inebriamento) não foi mais do que fizera há uns
dias numa entrevista ao Público. Por comodidade, e por
não ter ainda a transcrição da sua intervenção parlamentar, vou partir desse texto.
Numa altura em que o país assiste, entre o incrédulo e
o estupefacto à deriva do PS, em fuga para terrenos que nunca foram os dele, o
grupo dirigente que promoveu Pedro Nuno Santos procura explicar essa viragem
com uma viragem simétrica da coligação, e do PSD em particular. Eis o seu argumento: “afastamento do PSD do centro
facilitou” acordo à esquerda. Esse alegada viragem à direita é depois, na sua
opinião, ilustrada por um conjunto de ignóbeis malfeitorias contra o Estado
Social. Só que há, em todo o seu discurso, um problema: tudo o que diz não é
verdade. Nem sequer é uma deficiente interpretação da realidade: é pura e
simplesmente falso.
Como repetiu esses argumentos no Parlamento, não posso
deixar de os desmontar, ponto por ponto. Não porque uma mentira muitas vezes
repetida se torne numa verdade, mas porque em política o que parece, é. E não
quero que, pelo silêncio, possa parecer que tem razão.
Vamos então ao que disse ao Público para demonstrar
que “o PSD abandonou o centro político ao abandonar o consenso nacional na
preservação e defesa do Estado Social”. Usou sobretudo dois argumentos:
- 1. “Nos últimos quatro anos empurrou-se para
fora do SNS centenas de milhar de portugueses com o aumento das taxas
moderadoras.”
É falso, rotundamente falso. Primeiro, porque o número
de portugueses isentos do pagamento de taxas moderadoras aumentou nos últimos
quatro anos: neste momento as estatísticas oficiais indicam que há mais de seis
milhões de utentes isentos de pagamento de taxas moderadoras por razões de
insuficiência económica, a que se acrescentarão ainda quase 900 mil doentes
crónicos com idêntica dispensa. Mesmo assim, será que os quatro milhões de
utentes que sobram, os portugueses com menos dificuldades económicas,
abandonaram em massa o SNS por causa das taxas moderadoras? Fui de novo à
procura de uma resposta e não foi difícil de encontrá-la, pois vem na
“Avaliação do impacto de políticas de saúde”, um trabalho realizado por uma
equipa dirigida por Pedro Pita Barros, um académico reputado e independente
e publicado no passado mês de Setembro. Aí se
diz, taxativamente, que apenas uma minoria da população afirmou ter sentido
dificuldades no acesso a cuidados de saúde, mas sobretudo por causa do preço
dos medicamentos que, mesmo tendo baixado muito (essa descida ninguém discute),
ainda pesam nos orçamentos de algumas famílias. Dentro dessa minoria, as taxas
moderadoras não evitaram, “de forma generalizada, a utilização dos serviços de
saúde”. Mais adiante escreve-se mesmo que “no campo do acesso a cuidados de
saúde, as barreiras de acesso ao SNS, avaliadas pela utilização e necessidade
de utilização da população, não são significativas para a generalidade da
população e, ao contrário do que frequentemente se assume com base em situações
episódicas, não aumentaram durante o período de crise económica.” Isto são
factos baseados em estudos – o discurso de Pedro Nuno Santos são apenas
impressões baseadas no preconceito.
- 2. “O Governo PSD-CDS, ao abrigo da liberdade
de escolha, permite que se façam contratos de associação com escolas
privadas onde nas proximidades existem escolas públicas mesmo a funcionar
abaixo da sua capacidade.”
É caso para dizer que é preciso ter lata. Primeiro,
porque boa parte dos contratos de associação mais discutíveis foram decididos
por governos socialistas. Depois, porque nos últimos quatro anos do Governo de
Sócrates se gastaram 900 milhões de euros com esses contratos, e nestes quatro
anos esse gasto caiu para 600 milhões – e repare-se que é um “gasto” que
representa uma poupança, pois o que o Estado paga por aluno nos contratos de
associação é menos do que gasta por aluno na rede estatal. Por fim, bastaria
consultar de novo os dados oficiais e publicados para verificar que,
se alguma coisa aconteceu durante a última legislatura, foi a diminuição do
número de escolas com contratos de associação: eram 105 em 2009/2010, foram 84
em 2013/2014. Ou seja, um quinto das escolas perdeu esse estatuto. É caso para
dizer: neoliberal era José Sócrates.
Estes são apenas dois exemplos do tipo de mistificação
que se tem feito em torno de uma alegada “destruição do Estado Social”.
Até porque os números, como o algodão, não enganam: o peso da despesa
pública social no PIB situou-se em 2014 nos mesmos 25,2% que tinha em 2010,
estando bem acima da média da OCDE.
Gráfico preparado por Jorge Costa
A única coisa que aconteceu é que se conteve o
rápido crescimento das despesas nas áreas sociais, um crescimento que ameaçava
de falência todo o sistema. De resto não se tenham grandes ilusões: devido às
dinâmicas demográficas, Portugal tenderá a gastar cada vez mais dinheiro com os
sistemas de segurança social e de saúde (aqui também por efeito da evolução tecnológica).
Se não se fizer nada, deixando o sistema evoluir por si, ele ganhará vida
própria e tornar-se-á ainda mais incomportável do que já é hoje.
Neste quadro o normal, para mais num dirigente de um
partido de esquerda que está sempre a falar dos mais pobres, seria que este
defendesse a necessidade de dar realmente atenção aos que menos têm. E se
preocupasse a sério com a sustentabilidade dos sistemas de protecção
social. Mas não. A visão de Pedro Nuno Santos na mesma entrevista ao
Público não deixa até de ser muito peculiar: “É a classe média que precisa,
antes de mais, de um Estado Social forte, público e universal, tendencialmente
gratuito. E é essa classe média que, com a degradação dos serviços públicos,
mais sofreu nos últimos quatro anos. E é para a classe média que o PS fala,
quando fala da defesa do Estado Social.” Venha a mim, que a vida dos
pobrezinhos, como toda a gente sabe, é um mistério…
É caso para dizer: que confusão que deve ir naquela
cabeça! E é caso para ficarmos ainda mais espantados quando sabemos que foi
este o dirigente que António Costa escolheu para abrir o debate com o
primeiro-ministro (que, na resposta, literalmente o atropelou, o que face ao
nível de desligamento da realidade nem era difícil), em vez de o fazer ele
próprio, como líder do PS e como sucedeu nas outras bancadas.
Mas não nos enganemos: se o discurso deste dirigente
do PS é particularmente desequilibrado, ele reflecte, no essencial, o
pensamento e a estratégia de António Costa. O que se pretende é criar a ilusão
de que não foi o PS que se moveu para a esquerda, abandonando o centro e a sua
tradição reformista, deitando fora pelo caminho a parte mais inovadora do seu
programa eleitoral para conseguir o apoio condicionadíssimo das outras
esquerdas, mas que foi antes o anterior executivo que tinha um “radicalismo
ideológico neoliberal” que tornou impossível qualquer diálogo. Infelizmente
esta retórica – em que o próprio Francisco Assis alinhou – levou o PS a
sentir-se e a pensar como uma espécie de Syriza mais bem comportado, abrindo
caminho à ala mais radical de que Pedro Nuno Santos é apenas um dos rostos mais
visíveis.
Como já escrevi e rescrevi, um dos maiores pecados do
anterior governo foi ser menos reformista do que o necessário e menos
liberal do que o exigido num mundo competitivo como o nosso – em algumas
frentes, há socialistas europeus com políticas mais liberais do que, na
prática, as aplicadas por Passos Coelho (veja-se, por exemplo, o que
Renzi está a fazer com as leis do trabalho em Itália). Se alguma coisa
distingue Portugal é vivermos num ambiente cultural arcaico, iliberal tanto à
esquerda como em boa parte da direita, um mal antigo que explica muito do nosso
atraso político e económico.
Pouco antes das eleições, num almoço que tive com os
correspondentes da imprensa estrangeira em Lisboa, perguntaram-se se o programa
de Centeno não poderia ser o programa de que a esquerda socialista e
social-democrata europeia anda à procura há mais de uma década. Disse que
achava pouco provável, mas estava longe de saber que era apenas uma cortina de
fumo. Na verdade, como disse Álvaro Beleza, também ele dirigente socialista,
numa entrevista este fim-de-semana, o que se passa
é que “esta direcção do PS é uma deriva esquerdista”. Pois é. E vamos todos
pagar muito caro por isso, se é que já não estamos a pagar.
PS. Já depois de esta crónica estar
escrita, foi conhecido o teor da moção de rejeição do Programa do Governo
apresentada pelo PS. A sua linguagem não podia ser mais radical, reduzindo a
acção do anterior governo a uma deriva “para implementar uma agenda
radical e experimentalista, que foi muito além do que o programa previa, não
por necessidade, mas por uma consciente e deliberada opção ideológica”. Mais:
para o PS isso aconteceu não em nome da “sustentabilidade das contas
públicas, mas sim a alteração da relação de forças”. Se não soubéssemos que foi
o PS que negociou o memorando da troika, que tinha metas para o défice que
foram sendo suavizadas ao longo do seu período de vigência (ou seja, ficou-se
aquém da troika neste como em muitos outros pontos), até poderíamos acreditar
nesta história da carochinha. Mas isso é impossível: não só se trata de uma
tentativa grotesca de reescrever a história, como mostra até que ponto o
actual PS passou a utilizar a mesma linguagem radical da
extrema-esquerda.»
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