O título deste texto de José Manuel Fernandes, no Observador, já diz quase tudo. Mas leiam o resto.
«É oficial: a austeridade vai acabar. Basta acabar com
esta “perda de tempo” e António Costa sentar-se na cadeira de
primeiro-ministro e a amiga Catarina dar-lhe o seu voto (os do PCP
serão sempre mais
difíceis).
Os detalhes já começaram a encher os espaços
informativos.
A fuga de informação foi feita para um jornal de
economia, oNegócios, e estou certo que milhões de
portugueses respiraram de alívio. As pensões mais baixas – as que nunca tinham
tido cortes, sendo que as mais baixas até tinham vindo a ser actualizadas – vão
ser aumentadas. Todos os que recebem menos de 628 euros de pensão (e são
imensos) vão ser aumentados 0,3%. Uma festa: serão, na melhor das hipóteses,
mais 1,8 euros por mês.
Daria para rir se não fosse trágico. Mas é sobretudo
revelador: agora que teve de ver até onde chegava o dinheiro, a “maioria de
esquerda” concluiu que, afinal, ele não chega a quase nada. Mas a austeridade
acabou. “Virou-se a página”, como repete, qual um disco rachado, o putativo
primeiro-ministro quando lhe põem um microfone à frente.
Dirão: mas esse é apenas um dos pontos do acordo.
Também há o alívio da TSU para os salários mais baixos e a subida do salário
mínimo. Deixemos de lado o salário mínimo, pois é tema ainda em aberto e que,
se assumir a dimensão anunciada, pode ter consequências graves no nível de
desemprego e naquilo que ganham os trabalhadores com salários mais próximos
desse mínimo (Mário Centeno até
já estudou o assunto,
mas não se sabe se está esquecido ou distraído), e falemos só da TSU. Aí
teremos, em 2016, uma descida que representará, para um trabalhador que ganhe
600 euros, mais 7,8 euros por mês, o que equivale a 26 cêntimos por dia.
Parece que é com isto que os ideólogos do “acordo”
pretendem estimular o consumo interno. Vai ser um fartar vilanagem, está-se
mesmo a ver. Dará para uma bica dia sim, dia não, e assim se retomará o
“crescimento”. É tão ridículo que só tomando-nos a todos por tolos se pode
imaginar que esta medida possa ter outro efeito que não o efeito colateral de
abrir um rombo na segurança social. É que no bolso dos trabalhadores quase nem
se dará por ela.
Mas esperem lá, alertar-nos-ão: também haverá a
descida do IVA da restauração. Uma bica que custe hoje 60 cêntimos vai poder
passar a custar 55 cêntimos. E aqui já ganhamos todos. Uma refeição baratinha,
daquelas de 5,5 euros, por exemplo, poderá descer para 5 euros. Vai dar para pedir
mais uma sobremesa aí de três em três dias. O consumo interno vai bater palmas.
E o PIB disparar.
Tenham pudor e não brinquem connosco: o fim do IVA na
restauração será uma transferência quase directa de 300 milhões de euros de
receitas do Estado para os bolsos dos empresários do sector. Pouco mais
sucederá, porque o que tinha de suceder já sucedeu: basta andar pelo país (e
não apenas por Lisboa ou pelo Porto) para ver como este sector até se
modernizou com a crise e com o IVA a 23%. Se alguém precisa de ajuda em
Portugal não são os donos dos cafés e restaurantes – pelo menos nunca virão em
primeiro lugar.
Mas a cereja em cima do bolo do fim da austeridade é a
reposição, já em 2016 mesmo que faseada, dos cortes nos salários da
administração pública. De toda ela? Não: só da que ganha mais de 1500 euros. E
esses cortes só são a sério nos que ganham mais de 3165 euros mensais, que
esses sim vão recuperar mais depressa qualquer coisa que se veja: os 10% que
lhes tinham cortado. O facto de praticamente todos os que andam nestas
negociações caírem nesta categoria de portugueses não passa, está bem de ver,
de uma mera coincidência. Mas se alguém vai realmente ficar a ganhar, são a
dezena de milhar de portugueses, funcionários do Estados, muitos deles com
acesso fácil as televisões, que ainda estão abrangidos por um corte de 10% nos
seus salários. Não se admirem quando os virem na primeira linha dos que se
juntaram ao coro da propaganda sobre o “fim da austeridade”.
Entretanto isso vai custar 430 milhões ao Estado. É
muito, mas paciência: o que importa é ter esta parte das nossas queridas (e
egoístas) elites satisfeitas.
Olhando para todas estas medidas só é possível tirar
duas conclusões. A primeira, é que a conversa do “fim da austeridade” é para
parolo ver e alto funcionário da administração pública beneficiar. A segunda, é
que se estes é que são os amigos dos pobres (é assim que a esquerda se
auto-define), então coitados dos pobres. Porque, como é óbvio, mesmo sendo
muito pouca coisa para os que são mesmo mais necessitados, tudo isto também
trará consigo uma factura.
E quem paga essa factura? Os ricos, responder-nos-ão,
apontando para a empenhada e minuciosa desmontagem da reforma do IRC que até
tinha sido negociada com o PS, que nessa altura a aprovava.
Pobres tontos: uma parte do que vão fazer com o IRC
levará muitas empresas portuguesas, as que pagam impostos a sério, a
regressarem aos esquemas que lhes permitiam evitar a dupla tributação dos seus
lucros. E pobres de nós: uma das poucas reformas que podia tornar Portugal mais
atractivo para o investimento estrangeiro esfuma-se no ar (já se está a esfumar
no ar, como comprovarão se falarem com quem sabe e já nos diz que há
investidores a desistir de Portugal).
Mas não faz mal: como diz o PCP, tudo o que seja
esmifrar o “grande capital” servirá para reforçar o peso “a produção nacional”,
mesmo que os produtores nacionais não tenham um tostão para investir e ainda
menos para contratar mais trabalhadores, fazendo diminuir o desemprego.
É assim que, conforme vamos sabendo detalhes do
acordo, vemos como tudo ou é um logro, ou um erro, ou então é as duas coisas ao
mesmo tempo.
Logro, porque a austeridade não desaparece, toma sim
outras formas e apenas se detetam mudanças de ritmo (face ao cenário da
coligação) que só trazem riscos por troca com quase nenhumas vantagens.
Erro, porque toda a aposta é no consumo e, em nome
disso, prejudica-se o investimento, em especial o investimento que pode inovar
e trazer recursos para Portugal. Recursos e empregos.
Por fim, percebe-se de cada vez que se ouve falar
alguém do Bloco ou sobretudo do PCP, está tudo montado em cima de uma teia
frágil e artificial. Na guerra particular da esquerda, que não acabou, o que
vai contar a partir do dia do “acordo” é saber quem vai depois conseguir
atribuir o ónus a quem na altura em que a ruptura acontecer.
Não deixa de ser uma rica perspectiva para um país
que, com prudência mas segurança, já dava sinais de ter dobrado o Cabo das
Tormentas. E também não deixa de ser irónico – e ao mesmo tempo profundamente
injusto por tudo o que na altura foi
dito –
esta brincadeira só ser possível por Maria Luís ter deixado os “cofres
cheios”.
Estivessem eles vazios e os 19 mil milhões de empréstimos a refinanciar já em
2016 bem poderiam colocar a próxima maioria muito rapidamente na mesma aflição
em que se viu o Syriza. Então é que eu gostava de ver a solidariedade que
Jerónimo e Catarina para com António Costa…»
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