Maria Estela Guedes (foto de Eduardo Guimarães)
Membro da Associação Portuguesa de
Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos
Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto
São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
Alguns livros publicados: Herberto
Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia
Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara;
Tríptico a solo; A Poesia na óptica da Óptica; Chão de Papel.
Espectáculos levados à cena: O Lagarto de Âmbar
(Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais,
2008).
Do poeta diz o poema:
SEGUNDO DIA – O
MITO DA MATÉRIA
Nunca se
satisfaz, a Matéria.
Nada a contenta,
a tudo põe defeito.
Viciada na
economia, contém-se,
escolhe,
entre dois
instrumentos,
o que lhe dá
mais gozo - a miséria.
Há um encanto
irresistível
na casita
arruinada na floresta,
desde que a
chaminé deite fumo
porque o maior
conforto humano
aninha-se à
lareira do estômago.
Por isso a
Matéria ama o fumo que se ergue
da casita
isolada
no meio da
floresta
porque anuncia
pote ao lume
e a quentura do
forno.
A Matéria ama a
pobreza,
poupa água, ar,
terra, fogo,
apaga a luz,
na escuridão da
casita
perdida na
floresta,
bate com a
cabeça nas paredes
por poupar até
às fezes.
Árdua, difícil,
desespera os humanos, a Matéria.
Vive entre a
boca e o terço
e entre o terço
e as pernas,
e entre as
pernas e as portas.
Escancaradas,
para arejar a casa, nas manhãs geladas,
em que os campos
são de vidro e a
água cristaliza
por força da
temperatura inferior a
zero graus
centígrados de lágrimas.
A Matéria
derrete de gozo
como barra de
chocolate na língua
com o
sofrimento.
Sentiu o
martírio, foi flagelada, habituou-se a isso
como outros à
droga ficam vinculados.
Ela é a grande
onda maternal,
o tsunami do
auto-sacrifício
na ara de deus
nenhum
que o oceano
consegue dividir
de lado a lado
e o mito erguer
na pira do valor máximo - Zero.
Como os animais
que os filhos escorraçam
em chegando à
idade de caçar
para que se
afastem do seu território
e busquem o
próprio
ela é
implacável, a Matéria.
Encosta o filho
à parede,
cresce para ele
fingindo encolher-se
e destrói,
destrói tudo o
que ama
com as palavras.
in
“Diário de Lilith”
Nota – Refira-se, com apreço, que o seu “Chão de Papel” é um dos mais
belos e comoventes livros – na sua
escrita despojada e todavia sensível – dados a lume nos últimos vinte anos em
Portugal.
2 comentários:
Belíssimo!
Maria Viveiros
E eis Matéria de poema!
Muito bom.
Jacinto Oliveira
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