2 de dezembro de 2015

Do matarruanismo politicamente correcto



Assino a newsletter do Observador. E julgo que aquela que me foi enviada há pouco, redigida por José Manuel Fernandes, tem importância mais do que suficiente para que a sua divulgação seja um dever moral de qualquer cidadão. Aqui a deixo.


Os novos censores e os novos caceteiros, ou os limites da liberdade de expressão

O pretexto próximo deste Macroscópio é um título que saiu há dias num cantinho da primeira página do Correio da Manhã. Um título que rezava assim: Integração – Costa chama cega e cigano para o Governo. De imediato se desencadeou uma tempestade e, passados alguns dias (horas?), o número de queixas apresentado na Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) aproximou-se das duas centenas. É sabido que o Correio da Manhã anda muitas vezes no fio da navalha entre o que tolerável e o que é intolerável em jornalismo (já depois deste episódio a CMTV passou, na minha opinião, bem para lá dessa fronteira com a reprodução das gravações vídeo dos interrogatórios a Miguel Macedo, mas essa é uma outra discussão que talvez um dia mereça atenção nesta newsletter), mas é difícil ver a razão de tanta indignação com aquele título.

Devo dizer que tudo me teria passado despercebido não fosse a última crónica de João Pereira Coutinho numa edição posterior do mesmo jornal, intitulada 
A cegueira das patrulhas. Depois de recordar que nesse mesmo Governo de António Costa também se podia chamar a atenção para a novidade de uma negra ou mesmo para a ascendência goesa do primeiro-ministro, o cronista atira-se ao pensamento politicamente correcto: “Na histeria de censurar palavras para defender a ‘sensibilidade’ dos outros, as patrulhas não reconhecem aos outros ‘autonomia’ ou ‘racionalidade’ para se sentirem, ou não, ofendidos. Para os 175 queixosos, os deficientes não são deficientes; são espécies em risco, que devem viver em ‘habitat’ protegido.”


Sem qualquer referência a este episódio, um outro cronista, Henrique Monteiro, escrevia ontem no Expresso sobre o mesmo tema: 
A deriva censória do ‘politicamente correto’ (link para assinantes). Partindo de um texto de Edward Luce no Financial Times (a que já iremos), o antigo director do Expresso nota como é virtualmente impossível levantar a menor das dúvidas sobre os objectivos da Cimeira de Paris dedicada às alterações climáticas, mesmo havendo quem as tenha e seja gente cientificamente qualificada. Cita a seguir vários exemplos de censura em universidades norte-americanas, exemplo que mostram bem o exagera a que se chegou: “A fúria contra o que no passado se fez vai mais longe. Livros como ‘Metamorfoses’, clássico latino de Ovídio, é desaconselhado por descrever violações; ‘O Mercador de Veneza’, de Shakespeare, por ser ‘anti-semita’ ou até os mais recentes ‘Grande Gatsby’, de Scott Fitzgerald, ou ‘Não Matem a Cotovia’, de Harper Lee, por serem misógino (o primeiro) ou paternalista (o segundo).”

Vamos então ver o que escreveu Edward Luce no Financial Times, em 
The rise of liberal intolerance in America (sublinhe-se que “liberal” é a forma como nos Estados Unidos se classifica a esquerda mais assumida). Vejamos o seu ponto: “I tought to be a triumphal moment for American liberalism. In the space of a few years gay marriage has been accepted, marijuana has been legalised, America has twice elected its first black president and may well be gearing up to elect its first woman. Yet the revival of political correctness on US campuses — and the increasingly shrill tone of much of the intellectual left — tells another story. Instead of championing free speech, the left is trying to shut it down. In the name of diversity, it demands conformity. At stake is the character of US democracy. If elite Ivy League schools cannot stand the heat, what kind of kitchen will it be?”

Os exemplos alinhados por Edward Luce são numerosos e, no fundo, são a tradução prático do que indica uma sondagem recente (Outubro) sobre o que pensam os estudantes do ensino superior nos Estados Unidos, e que é bastante perturbadora: 
51% of students support speech codes, 33% unfamiliar with 1st Amendment. “Speech codes” são regras sobre o que se pode dizer ou não dizer; e a 1ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos é aquela onde se estabelece que o Congresso não poderá fazer qualquer lei que de alguma forma limite a liberdade de expressão. Ora “The report found that 51 percent of millennials on college campuses support their school having speech codes to regulate speech for students and faculty, and another 63 percent favor professors employing “trigger warnings” to alert students of material that could upset them. A shockingly high 33 percent could not identify the First Amendment as part of the Constitution that supported free speech. Similarly, 35 percent said that the “hate speech” was not protected. Nearly a third of self-identified liberal students said the First Amendment is outdated.”

A edição de Novembro da 
New Criterioncitada no Wall Street Journal, considerava que estes resultados reflectem uma situação que terá consequências para a liberdade: “With the assault on free speech and the First Amendment proceeding apace in institutions once dedicated to robust intellectual debate, it is no wonder that there are more and more calls to criminalize speech that dissents from the party line on any number of issues, from climate change to race relations, to feminism and sex.”

Como os leitores do Macroscópio já sabem, ou imaginarão, esta situação não é nova nos campus universitários norte-americanos, mesmo nos mais prestigiados. Inúmeros artigos têm manifestado, nos últimos anos, grande preocupação com esta situação. Alguns exemplos, uns recentíssimos, outros mais antigos:
  • Unlearning Liberty: Campus Censorship and the End of American Debate, onde pode assistir a um debate realizado no Cato Institute em torno do livro de Greg Lukianoff que tem precisamente o título acima referido. Mote: “If we don’t teach our children the value of free and open intellectual debate in our institutions of higher education, Lukianoff asks, then when will they ever learn?”
  • That’s Not Funny! - Today’s college students can’t seem to take a joke, uma reportagem da The Atlantic do passado mês de Setembro onde se conta como até um certo tipo de humor começou a ser banido dos espaços universitários. Ao relatar o comportamento de um humorista, a revista nota: “He would not tell the jokes that kill at the clubs. He would not do the bit that ends with him offering oral sex to the magician David Copperfield, or the one about a seductive woman warning him that she might be an ax murderer, or the one about why men don’t like to use condoms. Those jokes include observations about power and sex and even rape—and each, in its complicated way, addresses certain ugly and possibly immutable truths. But they are jokes, not lessons from the gender-studies classroom. Their first objective is to be funny, not to service any philosophical ideal.” Só que “These young people have decided that some subjects—among them rape and race—are so serious that they shouldn’t be fodder for comics.”
  • Free speech is flunking out on college campuses, um texto de Outubro de Catherine Rampell no Washington Post onde, depois de recordar casos bem conhecidos – como a retirada de convites para conferências a pessoas como Christine Lagarde, Condoleezza Rice ou Ayaan Hirsi Ali por causa das ideias que defendem ou defenderam – se conta como na Universidade de Wesleyan, no Connecticut, o jornal do campus, velho de 150 anos, viu o seu financiamento ser cortado apenas por ter publicado um artigo de opinião considerado conservador.
  • Trouble on campus: the rise of ban-happy student leaders, uma peça do Telegraph onde se conta como Germaine Greer, uma feminista, foi quase impedida de participar numa conferência na Universidade de Cardiff apenas porque acha que um homem que se submete a uma operação de mudança de sexo não passa por isso a ser uma mulher. Nesse atigo dão-se muitos outros exemplos de como o fenómeno já não é apenas “uma coisa de americanos”, antes se propagou às mais prestigiosas universidade do Reino Unido.
  • Why are student-union officials censoring criticism of Islamic State?, de Brendan O'Neill na Spectator é quase uma decorrência da referência anterior e conta como acabou por ser proibida uma conferência de um estudante que tinha lutado ao lado dos curdos contra o Estado Islâmico com base no argumento de que a outra parte também deveria estar presente.


Poderia continuar a citar mais textos e mais exemplos, mas julgo que o ponto está demonstrado: a agressividade de um certo politicamente correcto está a tornar-se ou uma séria ameaça à liberdade, ou criando situações que parecem querer renegar a nossa cultura em nome de uma tolerância que acaba por ser, antes de tudo o mais, intolerante. Sendo que se tem espalhado pela Europa sob a mais diversas formas, e ainda agora estamos a assistir a um debate bem significativo em Itália, onde o director de uma escola decidiu 
proibir o habitual concerto de Natal para não ofender a pequena minoria de estudantes de origem muçulmana.

Em Portugal também já assistimos a situações em que, pela intimidação, se procuram calar vozes discordantes (Henrique Monteiro, 
no seu texto que já citámos, refere-se a quem vem à caixa de comentários dos seus textos sugerindo o seu despedimento, e todos sabem que Isabel Jonet, por exemplo, não pode abrir a boca sem que lhe caia meio mundo em cima…). Um dos melhores veículos para exercer essa intimidação é utilizando as redes sociais, como notou Isabel Stilwell no jornal I, em A nova censura das redes sociais. Aí conta como pensou escrever sobre três figuras públicas – Cavaco Silva, José Rodrigues dos Santos e Pe. Portocarrero de Almada – e acabou por não o fazer, a conselho dos filhos e de amigos, para não ser, mais uma vez, insultada nas redes sociais. E conclui: “Decididamente, este novo mundo virtual em que se difama e insulta, a coberto do anonimato e fora da lei, atenta contra a liberdade de expressão. E não fica assim tão longe do lápis azul.”

Julgo que todos os que frequentam as caixas de comentários dos jornais ou têm contas numa rede social compreenderão Isabel Stilwell. O que antes vos deixei parece indicar que a pressão censória não se limita a vozes anónimas ou desqualificadas, antes está a penetrar lugares que historicamente sempre se dedicaram ao debate de ideias e à descoberta do inesperado, do que é novo e diferente e, tantas vezes, do que é capaz de fazer cair certezas.(…)»

Sem comentários: