15 de abril de 2016

Um par de crónicas bem afinfadas é do que eles precisam!



E não se fez rogado, o Alberto Gonçalves, no DN...


Andar aos papéis

Além do título apelativo, a história dos Panama Papers dava um filme. Um filme dramático, longo e chato como a ferrugem. Ou uma comédia razoável. Eu pelo menos ri-me aqui e ali. Há a rábula das virgens ofendidas com as violações nacionais do segredo de justiça que se tornam galdérias excitadas com qualquer revelação internacional obtida à socapa. Há a rábula dos regimes "progressistas" implicados, prova cabal de que o desprezo pela lógica do capital termina onde começa a possibilidade de ganhar uns trocos. Há a rábula do sr. Almodóvar, o cineasta cuja obra encerra subtis críticas ao consumismo e cuja vida abraça o dito sem subtilezas. Há a rábula dos desiludidos com a escassez na lista de milionários de Wall Street, que engendraram imediatamente uma teoria da conspiração para imputar os "papéis" a um golpe americano. Há a rábula do Expresso, que tarda em divulgar os "ex-ministros" metidos nisto. E há, sobretudo, a rábula dos que acham sinistra a existência de "paraísos fiscais", e criminosos todos os que fogem aos infernos do género.

Enquanto as boas almas se horrorizavam com os Panama Papers, em Portugal o governo prometia apostar jovialmente o fundo da Segurança Social em "reabilitação urbana", leia-se entregar os descontos de todos a um punhado de construtores amigos. É um mero exemplo, nem sequer fiscal. Porém, o que para o caso importa é o silêncio dedicado à proeza, garantia de que as boas almas não a estranharam. Não podiam, já que a tradição é justamente essa, a de o Estado achar que os cidadãos e as empresas são clinicamente incapazes de gastar o próprio dinheiro com juízo. E a resignação com que muitos cidadãos e muitas empresas aceitam o dogma parece dar razão ao Estado. Não dá: apenas dá razão a quem possui os meios e o engenho para colocar os rendimentos literalmente ao largo.

As terríveis offshores da lenda são, afinal, territórios que optaram por não sujeitar as pessoas a saques regulares e "legítimos". Por isso atraem fortunas. E por isso atraem o ódio dos socialistas dos vários partidos, genuinamente convencidos de que as fortunas seriam bem melhor aplicadas na satisfação de compinchas e na compra de votos. Quando Augusto Santos Silva sugere o fim das offshores em nome da "transparência", o cinismo é óbvio. É verdade que os Panamás e os Mónacos também atraem indivíduos corruptos ou no mínimo pouco confiáveis, por acaso o tipo de gente que nunca, eu fique ceguinho, alguma vez desempenhou funções estatais relevantes ou beneficiou delas. O facto de haver meliantes no ramo da filatelia, digamos, talvez não justifique a abolição dessa ancestral actividade.

A abolir alguma coisa, antes o socialismo. Não é por nada, mas tendo a simpatizar mais com instituições que respeitam o meu dinheiro do que com aquelas que mo subtraem. Desgraçadamente, a paixão é platónica: não tenho um euro fora do país, quer porque o Estado me tira metade dos euros primeiro, quer porque os paraísos em causa se limitam a receber os ricos. Ao contrário do que proclama o sensível Pacheco Pereira, as offshores só são uma ameaça para a democracia se não se democratizarem. Pormenores à parte, a ameaça é outra.


Ética republicana

O filho de Mário Soares, que nunca ninguém soube para que servia, não gostou das críticas de dois colunistas, Augusto M. Seabra e Vasco Pulido Valente, à nomeação da sua relevantíssima figura para ministro da Cultura. Logo, recorreu naturalmente ao Facebook para ameaçá-los com "um par de bofetadas". Sobre o primeiro, acrescentou o epíteto de "vampiro" e, com típica elevação, atribuiu-lhe os escritos ao "azedume, o álcool e a consequente degradação cerebral".

O caso, apesar do escândalo momentâneo, tem importância proporcional à do protagonista, o qual, sendo um humanista dotado, ainda aproveitou dois simulacros de retratação para lançar o que julga serem provocações. Em ambos, o filho de Mário Soares aliviou-se de bravatas infantis ("Peço desculpa se os assustei") ou comparou a promessa de agressão a - preparem-se - "uma figura de estilo de tradições queirosianas". Não sei se, daqui em diante, sujeito que estrangule a mulher poderá invocar Raymond Chandler (e literalmente Althusser) em tribunal. Sei que o filho de Mário Soares não podia integrar um governo democrático. E sei que, até sair para dispôr da liberdade de andar ao tabefe virtual, ficava impecavelmente no governo que temos.

Antes de beatificarmos o primeiro-ministro por "aceitar", que é diferente de impôr, a demissão do filho de Mário Soares, convém recordar que o dr. Costa é o herói responsável pelo sms irado a um director do "Expresso". E que um antecessor, hoje caído, do dr. Costa demitia ou tentava demitir jornalistas insubordinados. E que um dos partidos responsáveis pelo dr. Costa persegue na Justiça um comentador do "Porto Canal". E etc. Quando pediu ao filho de Mário Soares para não se esquecer da função que desempenhava, o dr. Costa confessou ao país a conveniência em disfarçar a natureza a pretexto do cargo. Mas a natureza dessa gente não muda. A ética republicana é pouco ética e demasiado republicana. Como continuaremos a ver e, com azar, a sentir.

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