E não se fez rogado, o Alberto Gonçalves, no DN...
Andar aos papéis
Além do título
apelativo, a história dos Panama Papers dava um filme. Um filme dramático,
longo e chato como a ferrugem. Ou uma comédia razoável. Eu pelo menos ri-me
aqui e ali. Há a rábula das virgens ofendidas com as violações nacionais do
segredo de justiça que se tornam galdérias excitadas com qualquer revelação
internacional obtida à socapa. Há a rábula dos regimes
"progressistas" implicados, prova cabal de que o desprezo pela lógica
do capital termina onde começa a possibilidade de ganhar uns trocos. Há a
rábula do sr. Almodóvar, o cineasta cuja obra encerra subtis críticas ao
consumismo e cuja vida abraça o dito sem subtilezas. Há a rábula dos
desiludidos com a escassez na lista de milionários de Wall Street, que
engendraram imediatamente uma teoria da conspiração para imputar os
"papéis" a um golpe americano. Há a rábula do Expresso, que tarda em
divulgar os "ex-ministros" metidos nisto. E há, sobretudo, a rábula
dos que acham sinistra a existência de "paraísos fiscais", e
criminosos todos os que fogem aos infernos do género.
Enquanto as boas
almas se horrorizavam com os Panama Papers, em Portugal o governo prometia
apostar jovialmente o fundo da Segurança Social em "reabilitação
urbana", leia-se entregar os descontos de todos a um punhado de
construtores amigos. É um mero exemplo, nem sequer fiscal. Porém, o que para o
caso importa é o silêncio dedicado à proeza, garantia de que as boas almas não
a estranharam. Não podiam, já que a tradição é justamente essa, a de o Estado
achar que os cidadãos e as empresas são clinicamente incapazes de gastar o
próprio dinheiro com juízo. E a resignação com que muitos cidadãos e muitas
empresas aceitam o dogma parece dar razão ao Estado. Não dá: apenas dá razão a
quem possui os meios e o engenho para colocar os rendimentos literalmente ao
largo.
As terríveis
offshores da lenda são, afinal, territórios que optaram por não sujeitar as
pessoas a saques regulares e "legítimos". Por isso atraem fortunas. E
por isso atraem o ódio dos socialistas dos vários partidos, genuinamente
convencidos de que as fortunas seriam bem melhor aplicadas na satisfação de
compinchas e na compra de votos. Quando Augusto Santos Silva sugere o fim das
offshores em nome da "transparência", o cinismo é óbvio. É verdade
que os Panamás e os Mónacos também atraem indivíduos corruptos ou no mínimo
pouco confiáveis, por acaso o tipo de gente que nunca, eu fique ceguinho,
alguma vez desempenhou funções estatais relevantes ou beneficiou delas. O facto
de haver meliantes no ramo da filatelia, digamos, talvez não justifique a
abolição dessa ancestral actividade.
A abolir alguma
coisa, antes o socialismo. Não é por nada, mas tendo a simpatizar mais com
instituições que respeitam o meu dinheiro do que com aquelas que mo subtraem.
Desgraçadamente, a paixão é platónica: não tenho um euro fora do país, quer
porque o Estado me tira metade dos euros primeiro, quer porque os paraísos em
causa se limitam a receber os ricos. Ao contrário do que proclama o sensível
Pacheco Pereira, as offshores só são uma ameaça para a democracia se não se
democratizarem. Pormenores à parte, a ameaça é outra.
Ética republicana
O filho de Mário
Soares, que nunca ninguém soube para que servia, não gostou das críticas de
dois colunistas, Augusto M. Seabra e Vasco Pulido Valente, à nomeação da sua
relevantíssima figura para ministro da Cultura. Logo, recorreu naturalmente ao
Facebook para ameaçá-los com "um par de bofetadas". Sobre o primeiro,
acrescentou o epíteto de "vampiro" e, com típica elevação,
atribuiu-lhe os escritos ao "azedume, o álcool e a consequente degradação
cerebral".
O caso, apesar
do escândalo momentâneo, tem importância proporcional à do protagonista, o
qual, sendo um humanista dotado, ainda aproveitou dois simulacros de retratação
para lançar o que julga serem provocações. Em ambos, o filho de Mário Soares
aliviou-se de bravatas infantis ("Peço desculpa se os assustei") ou
comparou a promessa de agressão a - preparem-se - "uma figura de estilo de
tradições queirosianas". Não sei se, daqui em diante, sujeito que
estrangule a mulher poderá invocar Raymond Chandler (e literalmente Althusser)
em tribunal. Sei que o filho de Mário Soares não podia integrar um governo
democrático. E sei que, até sair para dispôr da liberdade de andar ao tabefe
virtual, ficava impecavelmente no governo que temos.
Antes de
beatificarmos o primeiro-ministro por "aceitar", que é diferente de
impôr, a demissão do filho de Mário Soares, convém recordar que o dr. Costa é o
herói responsável pelo sms irado a um director do "Expresso". E que
um antecessor, hoje caído, do dr. Costa demitia ou tentava demitir jornalistas
insubordinados. E que um dos partidos responsáveis pelo dr. Costa persegue na
Justiça um comentador do "Porto Canal". E etc. Quando pediu ao filho
de Mário Soares para não se esquecer da função que desempenhava, o dr. Costa
confessou ao país a conveniência em disfarçar a natureza a pretexto do cargo.
Mas a natureza dessa gente não muda. A ética republicana é pouco ética e
demasiado republicana. Como continuaremos a ver e, com azar, a sentir.
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