Um excelente artigo este, de Alexandre Homem Cristo, no Observador:
Agosto de 2014. Publico, no
Observador, um artigo de opinião sobre a (falta de) exigência no acesso
à carreira de professor e o seu efeito na degradação da qualidade do ensino
público. Nesse dia, um vulcão de ódio explode nas minhas contas de e-mail e
facebook. Na caixa de comentários do jornal, dezenas ocupam-se a escrutinar (e
a inventar) a minha biografia – quem são os meus pais, onde cresci, onde
estudei, onde trabalhei, com quem fui visto. A difamação (pessoal e
profissional) estende-se aos blogs e às redes sociais. Recebo ameaças de
agressão, vindas de quem afirma saber onde moro. Sou insultado e alvo de todo o
tipo de calúnias. E, nos meus locais de trabalho, e-mails, cartas e
abaixo-assinados exigem o meu despedimento. A discordância não bastou, quem não
gostou do que leu tentou lixar-me a vida.
Bem sei que este episódio pessoal
nada tem de excepcional. Quem escreve nos jornais colecciona episódios
similares com professores, enfermeiros, ambientalistas, defensores dos animais.
Ou alentejanos, como aconteceu nestes dias com o (meu amigo) Henrique Raposo, a
propósito do seu livro “Alentejo Prometido” (FFMS, 2016). De facto, situações
do género, com diferentes graus de gravidade, sucedem vezes demais para que
ainda haja quem se faça desentendido quanto ao essencial – estar-se do lado da
liberdade de pensar, dizer e escrever, mesmo quando se discorda do que os
outros pensam, dizem e escrevem. E, no entanto, desentendidos há.
O ódio existe e existirá sempre. Daí
que a questão não esteja tanto no asco incorrigível e efémero que habita as
redes sociais, mas em quem o legitima e se alimenta dele. É simplista apontar o
dedo às redes sociais, dizer cobras e lagartos do facebook e jurar desprezo
eterno à internet. Mas não é eficaz. O culpado das proporções que o ódio
cibernético atinge não se chama Mark Zuckerberg nem facebook. E, por maior
impacto que tenha a sua boçalidade, os principais inimigos da liberdade não são
os idiotas anónimos que berram, queimam escritos ou insultam quem os escreveu.
São, afinal, os que se calam, os que receiam enfrentar a multidão, os que
justificam as agressões com um “ele pôs-se a jeito”, os que toleram o
intolerável e encontram um ângulo para encaixar a violência desde que os
violentados pensem de maneira diferente da sua.
Infelizmente, muita gente que
deambula no espaço público demonstrou viver num tempo que é mais velho do que
novo. Não é de agora e a perseguição ao Henrique Raposo só serviu para nos
avivar a memória. Que vários alentejanos não tenham reconhecido as suas raízes
no livro do Henrique é respeitável, embora se lamente que o tenham expressado
por via da intimidação. Mas que outros (e foram tantos) tenham validado essa
intimidação ultrapassa os limites da intolerância. Por exemplo, aGaleria Tintos e Tintas,
onde em Lisboa deveria decorrer o lançamento do livro, não quis estar envolvida
na polémica, encolheu-se e cancelou. Por exemplo, Nicolau Breyner,
em declarações ao DN, gracejou sem graça: “fazem bem os alentejanos em
ameaçá-lo. Estou a brincar, ninguém deve ser ameaçado, mas devia pensar bem no
que escreve”. Por exemplo, Francisco Louçã reduziu o assunto a um não-assunto e,
sem uma palavra acerca das ameaças ao Henrique e à família, sentenciou que
“fazer desta coisa que foi cometida por Raposo um caso nacional é que só mesmo
por desfastio”. Os cobardes, os que acham que se deve “pensar bem” antes de
escrever, e os que desdramatizam a violência contra os seus adversários
políticos. Eis aqueles que dão força à intimidação das redes sociais. São eles
os maiores inimigos da liberdade de expressão.
Habituámo-nos a que o exercício da
liberdade seja um acto trabalhoso, de bravura e de resistência contra a javardice. Mas
habituámo-nos mal. A liberdade tem um preço, já se sabe, mesmo que não devesse
ser assim. Mas o que poucas vezes se assinala é que esse preço só se cobra a
alguns, já que as liberdades que se reconhecem a uns não se toleram a outros. O
Henrique Raposo não foi o primeiro a escrever sobre a relação amoral da região
com o suicídio ou sobre a opressão das mulheres no Alentejo dos seus avós (e,
de resto, ainda hoje). Mas ao Henrique não se perdoa que o tenha feito. Afinal,
tudo o que separa a tolerância da intolerância é um nome – o do autor. Pode ser
que, da próxima vez que se marchar pelos direitos conquistados no passado de
Abril, haja alguém que lembre a batalha concreta do presente: a liberdade no
Portugal de 2016, porque depende de quem a exerce, ainda não é um valor
absoluto.
1 comentário:
Essa de comparar boa parte da Internet às portas dos urinóis é minha :) Mas não vale a pena processar o Henrique Raposo por isso.
De facto, a liberdade volta a estar ameaçada, agora que um novo governo jacobino está no poleiro. A história dos governos socialistas tem sido sempre marcada por ataques à liberdade de expressão e opinião, com os inúmeros casos de perseguição a jornalistas cometidos pelo governo Sócrates em destaque.
O António Costa quer policiar a Internet, como na China. Quer proibir o anonimato. Já proibiram piadas com o Primneiro-Ministro(lembram-se do caso Charrua?). A Esquerda que prega as "amplas liberdades" é intolerante à Liberdade.
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