19 de abril de 2016

Doutores, engenheiros, poetas e ministros



A propósito do post anterior, acrescento eu este outro artigo de Alberto Gonçalves, publicado na revista Sábado da passada quinta-feira.

Um poeta na cultura


Juro pela minha saudinha que nunca ouvira falar do novo ministro da Cultura até ao respectivo anúncio, que aguardei a tremer. Felizmente, meio mundo possuía uma opinião abalizada sobre o dr. Castro Mendes e elucidou-me num instante. Os jornais disseram que o homem é diplomata e escritor (ou "poeta diplomata"). Personagens secundárias produziram elogios secundários. E o Presidente da República, com típica moderação, jurou tratar-se de "um grande poeta, um grande ensaísta" e "uma grande figura da Cultura portuguesa, além de ser um magnífico embaixador". Como dava um trabalhão telefonar para os países por onde o dr. Castro Mendes passou, não confirmei os predicados diplomáticos. Como é fácil catar textos na Internet, pude verificar os atributos poéticos. E fiquei abismado. 

Fontes diversas divulgaram sobretudo o seguinte trecho: "Nós vivemos da misericórdia dos mercados/ Não fazemos falta./ O capital regula-se a si próprio e as leis/ são meras consequências lógicas dessa regulação/ tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus./ Enganam-se./ Os mercados são simultaneamente o criador e a/ própria criação./ Nós é que não fazemos falta." 

No que toca à forma, percebe-se que isto é um poema apenas porque as frases se partem ao meio e estendem-se por mais linhas do que as necessárias. Se eu/ escrevesse dessa maneira/ esta crónica deixaria de ser/ uma mera crónica e ascenderia/ à sublime dimensão/ poética.// Também seria provável que a SÁBADO/ me mandasse/ passear. Acerca do conteúdo, é evidente que o dr. Castro Mendes dispõe de firmes convicções ideológicas. Por azar, é o tipo de ideologia expectável num adolescente que assiste a um colóquio do Bloco no ISCTE. 

Veja-se outro exemplo, a primeira estrofe de O Sonho de Schauble: "Estavam os mercados em sossego/ dos seus juros colhendo doce fruto/ naquele encanto de alma ledo e cego/ que o Centeno não deixa durar muito;/ as bolsas escalando com apego,/ os olhos das agências bem enxutos,/ saltando e sorrindo sem cuidado:/ mas eis que Portugal tem outro fado!" Temos lirismo, temos glosa camoniana, temos análise económica, temos graxa ao PS e temos a presença, inédita na história da literatura, de um ministro das Finanças em verso decassílabo. 

Quem escreve assim não é gago. Nem grande escritor, convenhamos. É justamente o género de portento que passa por intelectual em nações exóticas, e que me diverte em doses imoderadas. Se qualquer titular da "Cultura" serve para distribuir o meu dinheiro pelos "agentes" do sector, este pelo menos promete retribuir-me com comédia. Não quero menosprezar o filho de Mário Soares, mas duas novelas "eróticas" remotas e umas atoardas no Facebook não se comparam à avantajada produção "literária" do dr. Castro Mendes, sujeito capaz de se citar a si mesmo e obra em progresso capaz de considerar que "cada poema é um encontro". 

Imagine-se agora centenas de poemas, muitos a vibrar de galhofa involuntária. A mim convenceu-me. Termino com uma homenagem, de 2010, ao comunismo brasileiro e ao seu chefe de propaganda: "Sei que estás em festa, pá:/ Lula deu grana!/ E o Brasil ganhou fama/ e prestígio pra xuxu!" 

Não fazemos falta? O dr. Castro Mendes fazia imensa.

15 de abril de 2016

Um par de crónicas bem afinfadas é do que eles precisam!



E não se fez rogado, o Alberto Gonçalves, no DN...


Andar aos papéis

Além do título apelativo, a história dos Panama Papers dava um filme. Um filme dramático, longo e chato como a ferrugem. Ou uma comédia razoável. Eu pelo menos ri-me aqui e ali. Há a rábula das virgens ofendidas com as violações nacionais do segredo de justiça que se tornam galdérias excitadas com qualquer revelação internacional obtida à socapa. Há a rábula dos regimes "progressistas" implicados, prova cabal de que o desprezo pela lógica do capital termina onde começa a possibilidade de ganhar uns trocos. Há a rábula do sr. Almodóvar, o cineasta cuja obra encerra subtis críticas ao consumismo e cuja vida abraça o dito sem subtilezas. Há a rábula dos desiludidos com a escassez na lista de milionários de Wall Street, que engendraram imediatamente uma teoria da conspiração para imputar os "papéis" a um golpe americano. Há a rábula do Expresso, que tarda em divulgar os "ex-ministros" metidos nisto. E há, sobretudo, a rábula dos que acham sinistra a existência de "paraísos fiscais", e criminosos todos os que fogem aos infernos do género.

Enquanto as boas almas se horrorizavam com os Panama Papers, em Portugal o governo prometia apostar jovialmente o fundo da Segurança Social em "reabilitação urbana", leia-se entregar os descontos de todos a um punhado de construtores amigos. É um mero exemplo, nem sequer fiscal. Porém, o que para o caso importa é o silêncio dedicado à proeza, garantia de que as boas almas não a estranharam. Não podiam, já que a tradição é justamente essa, a de o Estado achar que os cidadãos e as empresas são clinicamente incapazes de gastar o próprio dinheiro com juízo. E a resignação com que muitos cidadãos e muitas empresas aceitam o dogma parece dar razão ao Estado. Não dá: apenas dá razão a quem possui os meios e o engenho para colocar os rendimentos literalmente ao largo.

As terríveis offshores da lenda são, afinal, territórios que optaram por não sujeitar as pessoas a saques regulares e "legítimos". Por isso atraem fortunas. E por isso atraem o ódio dos socialistas dos vários partidos, genuinamente convencidos de que as fortunas seriam bem melhor aplicadas na satisfação de compinchas e na compra de votos. Quando Augusto Santos Silva sugere o fim das offshores em nome da "transparência", o cinismo é óbvio. É verdade que os Panamás e os Mónacos também atraem indivíduos corruptos ou no mínimo pouco confiáveis, por acaso o tipo de gente que nunca, eu fique ceguinho, alguma vez desempenhou funções estatais relevantes ou beneficiou delas. O facto de haver meliantes no ramo da filatelia, digamos, talvez não justifique a abolição dessa ancestral actividade.

A abolir alguma coisa, antes o socialismo. Não é por nada, mas tendo a simpatizar mais com instituições que respeitam o meu dinheiro do que com aquelas que mo subtraem. Desgraçadamente, a paixão é platónica: não tenho um euro fora do país, quer porque o Estado me tira metade dos euros primeiro, quer porque os paraísos em causa se limitam a receber os ricos. Ao contrário do que proclama o sensível Pacheco Pereira, as offshores só são uma ameaça para a democracia se não se democratizarem. Pormenores à parte, a ameaça é outra.


Ética republicana

O filho de Mário Soares, que nunca ninguém soube para que servia, não gostou das críticas de dois colunistas, Augusto M. Seabra e Vasco Pulido Valente, à nomeação da sua relevantíssima figura para ministro da Cultura. Logo, recorreu naturalmente ao Facebook para ameaçá-los com "um par de bofetadas". Sobre o primeiro, acrescentou o epíteto de "vampiro" e, com típica elevação, atribuiu-lhe os escritos ao "azedume, o álcool e a consequente degradação cerebral".

O caso, apesar do escândalo momentâneo, tem importância proporcional à do protagonista, o qual, sendo um humanista dotado, ainda aproveitou dois simulacros de retratação para lançar o que julga serem provocações. Em ambos, o filho de Mário Soares aliviou-se de bravatas infantis ("Peço desculpa se os assustei") ou comparou a promessa de agressão a - preparem-se - "uma figura de estilo de tradições queirosianas". Não sei se, daqui em diante, sujeito que estrangule a mulher poderá invocar Raymond Chandler (e literalmente Althusser) em tribunal. Sei que o filho de Mário Soares não podia integrar um governo democrático. E sei que, até sair para dispôr da liberdade de andar ao tabefe virtual, ficava impecavelmente no governo que temos.

Antes de beatificarmos o primeiro-ministro por "aceitar", que é diferente de impôr, a demissão do filho de Mário Soares, convém recordar que o dr. Costa é o herói responsável pelo sms irado a um director do "Expresso". E que um antecessor, hoje caído, do dr. Costa demitia ou tentava demitir jornalistas insubordinados. E que um dos partidos responsáveis pelo dr. Costa persegue na Justiça um comentador do "Porto Canal". E etc. Quando pediu ao filho de Mário Soares para não se esquecer da função que desempenhava, o dr. Costa confessou ao país a conveniência em disfarçar a natureza a pretexto do cargo. Mas a natureza dessa gente não muda. A ética republicana é pouco ética e demasiado republicana. Como continuaremos a ver e, com azar, a sentir.

4 de abril de 2016

Dos descaminhos da estupidez vergonhosa






Uma conspiração de estúpidos

Quando não assiste a partidas de futebol ao lado do excelentíssimo Presidente Marcelo ou inaugura cidades do futebol (?) ao lado do excelentíssimo Presidente Marcelo, António Costa diz coisas. Há dias, com a habitual sofisticação, disse por exemplo que o PSD defende os exames apenas para apurar "a raça dos eleitos". Quem nos dera que fosse verdade: a exigência escolar, caso existisse, separaria os espertos dos espertalhões e, entre outras vantagens, impediria que criaturas sem préstimo chegassem a primeiro-ministro. Como a raça se mede por baixo, são os literalmente não eleitos que mandam nela e dispõem de poder para cometer as calamidades que bem entendem.

Também há dias, o dr. Costa - que em Junho passado lamentou que Portugal não comemorasse o 1.º de Dezembro ou, na ilustrada cabeça dele, "a sua data fundadora" - convocou uma cerimónia solene para devolver à nação os quatro feriados que lhe faltavam: Corpo de Deus, Implantação (género prótese) da República e Todos-os-Santos, além do citado. É o retorno dos "momentos históricos" do eng. Sócrates, que chamava fanfarras para inaugurar um armazém de pneus. Só é pena que o dr. Costa não organize liturgias assim bonitas para assinalar cada aumento dos combustíveis.


Na presença de vultos do calibre dos ministros da Cultura e da Defesa, do sr. Pio e de um ex--vice-presidente de Vale e Azevedo, todos ilustres representantes da capacidade selectiva do nosso ensino, o dr. Costa notou haver "princípios, valores e acontecimentos fundamentais cuja memória e celebração não podem estar à mercê de cálculos ocasionais, de impulsos ideológicos e de fins propagandísticos". Felizmente, os tais feriados não devem integrar as categorias acima, pelo que se adaptam com primor aos cálculos, à ideologia e à propaganda. Depois, com o fervor épico de um almirante Thomaz, o dr. Costa falou em "pedagogia cívica", "sentido patriótico", "atitude contemporânea" e "capacidade de mobilizar" os portugueses. Tudo isto a pretexto de uma golpada de rústicos e de uma insurreição que nos livrou do salário médio espanhol, mais as festas cristãs que tanto comovem a maioria de esquerda.


Enquanto sociedade, nunca nos distinguimos pela lucidez, traduzida na responsabilização dos políticos e na suspeita de que os actos implicam consequências. Mas começa a ultrapassar-se até os nossos folgados limites. Não é a questão dos feriados, irrelevante sob ambas as perspectivas, mas o Carnaval grotesco que adorna a respectiva "reposição" e esconde mal, muito mal, o resto. Não é o regresso à perigosa leviandade de Guterres e Sócrates, mas o gozo infantil que agora a acompanha. Não é o altíssimo risco de nova falência e de novo "resgate", mas a alegria ou a apatia com que os aguardamos. Não é o sermos enganados, mas o sermos enganados por burlões desastrados e assistirmos resignados à burla.


A palavra final ao dr. Costa: "Temos de saber que Portugal não começou connosco nem vai acabar connosco." Pois não: o provável é que eles acabem com Portugal. Ao lado do excelentíssimo Presidente Marcelo.


Os descaminhos da fé


As más notícias sucedem-se. Não só o Estado Islâmico já ameaça directamente Portugal como continua a recrutar portugueses, sobretudo em Lisboa e na zona centro. O único consolo chega das autoridades belgas, que enfim descobriram a explicação para a capacidade de sedução do bando de psicopatas: "Os nossos jovens são vítimas de SMS propagandísticos." E de "predadores", acrescenta o Guardian. Trata-se, afinal, do que sempre suspeitei: aquilo no fundo é gente impecável, desviada pelas proverbiais más companhias para rebentar com terceiros e outros gestos talvez censuráveis. Antes que a coisa chegue ao aqui norte, à cautela já desliguei o telemóvel.

Da vergonha diplomática


Em Outubro passado, o caso Luaty Beirão inspirou Mariana Mortágua a escrever uma crónica violentíssima no Jornal de Notícias. Aí, a deputada do BE atacava com firmeza "a impunidade de que José Eduardo dos Santos beneficia para manter o seu regime de corrupção e ataque aos direitos humanos". E não se esquecia, antes lembrava-se a cada parágrafo, de apontar as "especiais responsabilidades" do governo português "nesta vergonha diplomática". Estava lá tudo: o ministro Machete, que se desculpava pelas investigações a figuras do regime de Luanda; o ministro Portas, que visitou a cidade; Cavaco Silva; Ricardo Salgado; etc. Enquanto, por reles interesses materiais, o poder daqui fechasse os olhos ao poder de lá, a apurada sensibilidade social da dona Mariana nem a deixava dormir em condições. Que mulher enorme.

Infelizmente, bastou um semestre para encolher. Há dias, Luaty Beirão e os seus parceiros foram condenados a cinco anos de prisão e, para que não a acusassem de incoerência, a dona Mariana voltou à carga no JN. Nova crónica, a velha luta pela liberdade de expressão. Pelo meio, nem uma referência ao nosso governo. O governo alterou as relações económicas com Angola? Descontadas as encenações na AR, não consta. Nem consta que a anunciada visita àquelas bandas do PM (e do PR) seja acompanhada por um exército libertador. O que mudou? As conveniências, ou os titulares do governo e o apoio do BE ao mesmo.

Se custa ver PSD e CDS votarem ao lado do PCP, nesta ou em qualquer matéria, custa mais ver as meninas do Bloco passarem por campeãs dos direitos humanos. A menos que a pulhice tenha agora outro nome.